Depois de assistir o novo Coringa
(Joker), que ganhou o prêmio de melhor filme no festival de Veneza, magistralmente
interpretado pelo grande Joaquim Phoenix, roteirizado e dirigido com muito
primor por Todd Phillips, dá pra se compreender melhor o motivo dos moralistas,
hipócritas e conservadores (sob tudo alguns políticos e religiosos) - ou quem
não entende de cinema e arte - detratarem e fazerem campanha contra o filme. Joker é um drama psicológico a nível dos
grandes filmes do gênero. Coloco ao lado de obras primas do cinema como ‘Laranja
Mecânica’ do mestre Stanley Kubrick. O ator
Joaquim Phoenix dá show de atuação, comparando-se aos grandes Malcolm MacDowell
e seu personagem Alex Delarge no ‘Laranja Mecânica’, ao Javier Barden de ‘Onde
os Fracos não tem vez’ e ao Heath Ledger, ator que faleceu e interpretou o
melhor Coringa da história do cinema (agora tendo Phoenix ao seu lado) no ‘Batman,
o cavaleiro das trevas’. No cinema, cheguei a comentar com a Liza (minha
companheira) que, quando o Coringa é incorporado, Ledger e Phoenix parecem um só,
num verdadeiro show de interpretação de Phoenix, digno da obra prima que é o
filme de Phillips.
Basicamente e de uma forma geral,
temos dois vieses de representação dentro da história do filme. Um diz respeito
a teoria da ‘luta de classes’, do pensador Karl Marx. Outro, a luta dos ‘excluídos/desvalidos’
para manterem-se vivos dentro de um sistema meritocrata, segregador e
excludente. Ou seja, a vida das pessoas mal tratadas pela sociedade por serem ‘diferentes’,
não se enquadrarem ou sofrerem de alguma doença (como os transtornos mentais, muito
comuns nos dias de hoje) frente a certos valores sociais ou culturais elitistas
e seletivos da sociedade contemporânea. De forma dura, o personagem principal,
simboliza as duas coisas: a classe social explorada (pobre e trabalhadora –
mesmo que a arte não seja considerada trabalho por alguns), e a classe dos
excluídos/desvalidos. Gostem ou não os moralistas e/ou hipócritas, o filme é
uma grande representação da realidade do mundo atual, sob tudo, da cultura
norte americana (e também amigos/as, de certa realidade brasileira que vivemos
atualmente, a partir do governo Bolsonaro).
O escritor, cineasta e crítico da
cultura norte americana, Michael Moore, disse em entrevista: “(...) tudo o que ouvimos sobre esse filme é
que devemos temer e ficar longe dele. Nos disseram que é violento, doente e
moralmente corrupto. Fomos informados de que a polícia estará presente em todas
as sessões neste fim de semana em caso de ‘problemas’ (referindo-se ao lançamento
do filme). Nosso país está em profundo desespero, nossa constituição está em
pedaços, um maníaco desonesto do Queens tem acesso aos códigos nucleares – mas
por algum motivo, é de um filme que devemos ter medo. (...) Eu sugeriria
o contrário: o maior perigo para a sociedade pode ser se você não for ver este
filme. A história que conta e as questões que ela suscita são tão profundas,
tão necessárias, que se você desviar o olhar da genialidade dessa obra de arte,
perderá o que ela está nos oferecendo. Sim, há um palhaço perturbado, mas ele
não está sozinho – estamos de pé ao lado dele. (...) este filme não é
sobre Trump. É sobre a América que nos deu Trump – a América que não sente
necessidade de ajudar os marginalizados, os necessitados.” Este trecho de Moore
sintetiza bem o que é o Coringa de Phillips e Phoenix. E ele encerra: “Quanto
tempo se passou desde que vimos um filme aspirar ao nível de Stanley Kubrick?”.
Isso me fez querer assistir ainda mais o filme.
Em suma,
Joker (Coringa) é muito mais do que
um filme de ficção de um personagem de história em quadrinho. É um filme duro e
triste. Mas também é uma denúncia, um relato, uma crítica sociocultural através
de um personagem simbólico e representativo. Nem herói ou mocinho, vilão ou
bandido, Coringa é produto atormentado, condicionado, criado por uma sociedade,
por uma cultura e seus valores violentos, hipócritas, excludentes,
segmentadores, onde o afeto e o respeito às diferenças não é prioridade – isso te
lembra alguma realidade próxima? Uma sociedade espetacular (leia-se ‘Sociedade
do Espetáculo’ de Guy Debord), do cansaço ou da exaustão (leia-se Byung-chul Han
e Viviane Mosé) e dos excessos (leia-se taoismo), onde os discursos demagógicos
e sensacionalistas, a alienação, a mentira, a concentração de renda e de poder,
da política, dos meios de comunicação de massa e da classe alta, criam vítimas
que se tornam criminosos. Ou seja, frutos maduros de uma cultura podre, como é o
Coringa.
Não
estranha os ‘donos do poder’, os elitistas, estremecerem ao verem um filme cujo
personagem principal, um desvalido deste sistema, que representa tantos outros,
seja levado a reagir de forma brutal contra àqueles que o exploram, humilham,
ignoram, violentam, a ponto de querer diminuir ou boicotar a produção (é nesta mesma
lógica que ‘Mariguella’ ainda não estreou no Brasil, e que ‘Bacurau’ não passou
em algumas salas de cinema, como a de Chapecó, por exemplo). E o personagem,
antes de se tornar o Coringa, tentou. Lutou para se manter dócil e equilibrado
dentro de um sistema desequilibrado e nada afetivo. Mas, não foi possível. E eis
que então nasce o Coringa, este símbolo, esta representação, este fruto de uma
cultura que todos conhecem, mas nem todos admitem.
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