(imagem do filme '1,99: Um supermercado que vende palavras' de Marcelo Masagão)
Vivemos um momento
onde os acessos nunca estiveram tão garantidos, historicamente falando. Graças
muito ao tratamento dado à economia pelos governos (de orientação de esquerda,
vamos assim dizer) Lula/Dilma. Tanto que, o Brasil saiu de uma economia
‘instável’ e historicamente ‘subdesenvolvida’, para uma economia mais ‘estável’,
figurando hoje entre as oito economias mais fortes do globo - conste que no modo de produção capitalista,
economicamente falando, nada é tão ‘estável’. Mas vamos deixar esse ‘detalhe’
de lado para avançarmos no tema. De fato, o acesso hoje é mais garantido que
outrora. A nova ‘classe-média ascendente’ (fenômeno contemporâneo) está aí para
comprovar tal tese. E não fui eu quem inventou isso. Atualmente, o poder de
consumo do brasileiro anda bom. Ele frequenta shoppings, faz festas e come
churrasco no final de semana. Ele financia, compra e paga seu carro zero. Ele
repara ou constrói sua casa. Ele alimenta-se melhor e tem acesso a bens de
consumo como nunca antes na história do país. E isso tudo faz parte desse
‘avanço econômico’ gerado por políticas de ‘inclusão’ e facilitações nos
acessos. E isso é bom. Quer dizer, até certo ponto. No caso, pode ser bom. Mas,
também, pode não ser. Confuso? Claro, como muito do que penso e escrevo. Mas
vamos lá, tentar ao menos, entender isso (eu me incluo nessa tentativa –
conste!).
De fato os acessos
aos bens de consumo e necessidades básicas materiais e algumas até imateriais
melhoraram nos últimos anos, e isso me parece inegável. Tirando uma quantia de
opositores que tentam fazer a crítica como se tudo isso fosse meramente um
‘assistencialismo’ por parte do governo, grande parcela da população percebe,
sente e vê essas melhorias acontecerem ao seu redor e consigo (agora, se isso é
processado como sendo parte de um projeto governamental, já não tenho tanta
certeza). A partir dessa ‘base’, dessa relativa estabilidade econômica por que
passa o país, alguns ‘outros avanços’ se fazem necessários e urgentes. São os
avanços na área ‘intelectual-cultural’. Não que todo mundo tenha que se tornar
ou vá ser um douto letrado, não é isso. Avanços na área ‘intelectual-cultural’ condizem
com acessos aos materiais culturais e artísticos disponíveis no país. Ou seja,
também fazendo parte do consumo dado por esse avanço econômico. Hoje, muito se
fala em ‘consumo de cultura’. Pessoalmente, não gosto muito desse modo de
emprego do termo ‘consumo’ casado a ‘cultura’, mas, falarei desse jeito,
acompanhando o discurso corrente. Depois de saneada a fome, adquirida a
estrutura básica e alguns ‘luxos’ ofertados por essa sociedade do consumo e dos
acessos, vem os ‘grandes vilões’ da história (sob tudo, da história contemporânea):
os ‘valores’ e ‘hábitos’, os quais compõem, de grosso modo, a cultura.
A sociedade como
conhecemos, basicamente é constituída de espaços e corpos que ocupam esses
espaços. Esses corpos por sua vez carregam em si algo a que chamamos ‘mentalidades’.
Essas mentalidades são constituídas a partir de certos conhecimentos dados pela
razão, percepção, visão, leituras, sensibilidades, relações, interpretações,
experiências. Resumindo: uma relação entre pensamento e prática. Quando falamos
em corpo e sociedade, podemos nos referir a um ‘corpo social’, que compreende
as pessoas com seus corpos e pensamentos, os corpos com seus espaços, os
espaços com suas práticas, convívios e/ou relações. Tudo isso se relaciona
diretamente com a cultura. Portanto, independente da forma, somos seres
culturais. Divididos estão o modo de organização coletiva (sociedade) e a cultura,
em, basicamente, duas estruturas. Uma delas chamaremos de ‘infraestrutura’, que
compreende os aspectos físicos e materiais do corpo social, a outra de
‘superestrutura’ (ou ‘supra’), que compreende os aspectos mentais e
intelectuais do corpo social – ambas compõem a sociedade e sua cultura (ou suas
‘manifestações culturais’). A partir dessa compreensão, vamos ao ponto central
da nossa análise ou discussão.
A questão econômica
está no âmbito da infraestrutura, no sentido existencialista da palavra, ou
seja, a economia é algo material, enquanto a cultura, no seu sentido imaterial
ou intelectual-mental, está no âmbito da superestrutura. Então, como já vimos, o
Brasil avançou bastante na sua infraestrutura. Querendo ser otimista, penso que
o país também avançou uma quantia (só que menor) na sua superestrutura. A
questão central quando tratamos da superestrutura, são os valores e hábitos que
eles inspiram – falando de uma maneira geral, a cultura. Pensando nisso, uma
questão se apresenta: Se houve um aumento quanto aos acessos do brasileiro (a
quase tudo), de qual acesso estamos falando? Precisamos identificar isso para
que tudo não se torne qualquer coisa. Os acessos também se deram a nível
cultural? Penso que sim. Mas de qual cultura falamos? Ligada a que hábitos e
valores? O aumento do consumo dado pela condição econômica atual gera que tipo
de consumo? Quais são os bens de consumo mais acessados nesses anos em questão?
Assim chegamos numa
questão de postura ou posição, definidas a partir da linha de raciocínio
anterior. É sabido que existe em cada pessoa uma gama de valores, os quais
resultam em práticas ou hábitos, por exemplo, se mais brasileiros compraram sua
televisão de tela plana, led, ou o que for, esses tiveram mais acesso as
programações dos canais transmissores – além das condições econômicas para tal.
Mas quais conteúdos predominam nesses canais, nessas programações? O que, por
exemplo, uma telenovela projeta? Qual valor, qual hábito ela alimenta? Da mesma
forma, se consumiu mais livros ou artes afins? Será que ter simplesmente o
acesso faz com que a pessoa afine sua mentalidade, seu intelecto, seu gosto,
seus valores e hábitos, sua cultura? Agora saímos da televisão e vamos para a
escola (nem tanto, pois a TV também ‘educa’ – e como?). E as escolas, e as
universidades, as igrejas, clubes sociais, a família, o que essas instituições
consomem? O que essas instituições promovem? E o discurso político institucional-oficial,
qual mentalidade ele estimula? A partir do que? O atual presidente uruguaio Pepe
Mujica, com muita postura declarou que "...uma
das desgraças da política é ter abandonado o campo da filosofia e ter se
transformado em um receituário econômico…”. Complementado a isso, a socióloga
Rita M. Coitinho diz: "Os
receituários econômicos, ao apartar a vida social da economia, estão voltados
exclusivamente para o equilíbrio da economia
capitalista". - eu diria mais: 'a
separação da vida social e cultural - da economia'.
Pensando a partir desse complexo, só me resta insistir numa
mudança, com um avanço, só que, não meramente econômico, material,
infraestrutural. Um ‘avanço’ cultural ou superestrutural. E como isso se daria?
Não tenho certeza, porém, penso que com certas ‘reformas’ socioculturais e nas
mídias (sob tudo as oficiais), já daríamos um bom passo. É preciso ir de
encontro às necessidades e anseios da população, para além da questão econômica
e política. As pessoas precisam também de arte e sensibilidade para dançar a
vida para além da promessa de um futuro que nem sequer existe, de um sucesso
individual e material que amesquinha e mata o fundamento da vida, para
sorrirem, terem prazer e certo ‘refinamento’ na hora das ‘escolhas’, na hora do
consumo. Já que consumimos como nunca, precisamos prezar por um consumo
sustentável, que vá de encontro com as diversidades, que respeite a natureza,
as crianças, os velhos, os diferentes. ‘Uma cultura, não de inclusão, mas de
não exclusão’, pois enquanto pensamos na necessidade de incluir, temos um
sintoma de ‘doença social e cultural’. Longe de idealismos, mas com um tanto de
utopia, precisamos modificar essas relações. A sociedade, a cultura, os valores
e hábitos, devem dar a garantia da ‘não exclusão’, pois se precisamos incluir,
é porque nossa cultura algum dia já excluiu e continua fazendo. Além do mais,
como provoca o pensador e poeta do caos Hakim Bey: ‘Incluir no que? Nisso?’
(referindo-se a sociedade do espetáculo e do consumismo).
“A alienação do espectador em favor do objeto contemplado (o que resulta de sua própria atividade inconsciente) se expressa assim: quanto mais ele contempla, menos vive; quanto mais aceita reconhecer-se nas imagens dominantes da necessidade, menos compreende sua própria existência e seu próprio desejo” (Guy Debord - 'A sociedade do espetáculo')
Alguns pensadores e/ou teóricos da sociedade moderna e contemporânea,
como Debord, Lipovetsky e o próprio Orwell (literato), falam em suas obras numa
certa ‘sociedade do espetáculo’, num certo ‘império de efêmero’ e num certo
‘big brother’. Não só eles, mas o próprio Marx problematiza essas questões,
assim como Bourdieu quando trata do habitus
e da reprodução nos aparelhos ideológicos e de reprodução, assim como Nietzsche
no seu ‘Crepúsculo dos Ídolos’, entre outros. São vários os pensadores e
pesquisadores que falam de coisas diferentes frente ao mundo moderno, mas que se
relacionam entre si, tendo o ‘modo de vida’, a ‘cultura’ e o meio
‘sociocultural’ como problemática. Relacionando todos eles (ou alguns deles),
chegamos a um pensamento mais aberto e possível dessa perspectiva
sociocultural, tema da nossa análise ou discussão.
Em suma, crescemos ou avançamos na economia. Precisamos agora
(e acredito ainda não ser tarde), também avançar no fator cultural, em que concernem
as mentalidades, o intelecto, o bom uso das linguagens, os hábitos e o modo de
vida. E para avançar nisso, faz-se urgente uma resistência, uma desconstrução
frente a certo modo de vida, a certa ‘lógica espetacular’ de mercado, consumo e
status. Começando pela educação, pois é na nova geração que isso pode
acontecer. Os produtos, ao contrário do que muitos pensam, trazem em si cargas
de ideologia, status e afins. O espetáculo cotidiano promovido pelos meios de
comunicação de massa e pela política ordinária oficial em seus discursos e
arranjos somam na manutenção dessa cultura, desse modo de vida que, mais ou
menos, todos conhecem, sentem, ou pelo menos vivem. A questão é assumir e
encarar isso, ter postura frente ao mundo, a ordem social e a si mesmo. O que é
bem difícil, eu sei, mas não impossível.
Para possibilitarmos-nos uma cultura mais ampla, recheada de
diversidades e linguagens, as quais se comuniquem e que aprimorem a existência
e a vida humanas, não precisaríamos pensar diferente? Para agir ou reagir
diferente? Frente a essa problemática, a pergunta que grita: ‘Pra isso, o
acesso, por si só, basta?’ Fica o problema. Penso que seja um bom começo.