“Aquele que luta contra
monstros deve acautelar-se para não tornar-se um monstro. Quando se olha muito
tempo para um abismo, o abismo também olha para você.” (F.W. Nietzsche)
O título desta reflexão crítica vem a partir daquilo que
chamo de ‘teoria do abismo de Nietzsche’ (resumida na citação acima), e da
forma de reconhecimento ou agradecimento que se tornou muito popular,
principalmente entre praticantes ou entusiastas de um ‘modo de vida terapêutico
ou alternativo’, como é muito comum de se dizer, a ‘gratidão!’. De um tempo pra
cá no ocidente, a busca, aceitação e/ou assimilação de algumas filosofias, práticas
de vida ou terapias orientais e nativas (indígenas), assim como, formas de se
cultivar ou produzir alimentos e se (re)aproximar da natureza (meio-ambiente),
se tornou algo corriqueiro. Entre estas práticas podemos citar como exemplo o
yoga, a meditação, a permacultura, o cultivo e uso de plantas medicinais, a
alimentação orgânica e vegana, a dança circular, o uso de ayauhasca nos céus
(coletivos), o ‘xamanismo’, o tantrismo, as terapias e espiritualidades
orientais, etc. Estas práticas se disseminaram principalmente entre as classes
média e alta, onde pessoas se reúnem para praticar o que alguns chamam ‘estilos
de vida’ e/ou aplicar projetos relacionados. E é bom que isso esteja
acontecendo, principalmente se permeado pela sinceridade. Porém, uma parte
desta busca ou transformação no modo de vida, que também se pensa ‘revolucionária’
em muitos aspectos e casos, acaba adquirindo uma ‘aura exclusivista’, onde se
assume um discurso de superação, aprimoramento, refinamento, progresso,
desenvolvimento, melhoria, superioridade de vida frente as demais.
De certo modo, dá pra se dizer, sim, que acontece uma
transformação, uma superação ou aprimoramento na forma de se viver ou estar no
mundo, o que também reflete numa mudança de mentalidade e comportamento. Mas o
problema que trato aqui, vai além disso. Ele se refere a certo discurso que
muitas vezes acaba sendo prepotente, arrogante, segregador, moralista, onde uma
suposta superioridade sobre aquilo que supostamente se tenha superado, ou acima
do que se tenha progredido, e aí temos a velha concepção de ‘progresso positivista’
aplicada na também suposta ‘espiritualidade’ ou mente iluminada, superior, etc.,
de alguns praticantes ou entusiastas destes ‘modos de vida’ que já são cult’s e
não mais simples como, naturalmente e historicamente o são. O fato é que muito
disso se tornou um bom negócio (grande em alguns casos), o que também pode ser
dito como uma indústria, a ‘indústria do espírito’.
“O espetáculo está em toda a parte" (Guy Debord, ‘A Sociedade do
Espetáculo’)
Numa manhã, enquanto preparava meu café, ouvia uma live de
uma ‘escola de permacultura’ no instagram, onde dois casais dialogavam sobre a
saúde alimentar e de vida a partir das suas práticas agrícolas e terapêuticas. Um
tema que muito me diz respeito, já que também faço parte deste mundo (o das
buscas pela naturalidade – conceito a partir do taoismo, concepção,
espiritualidade e prática de vida ao qual me integro). Lá pelas tantas falavam
sobre a relação do ser humano com o meio socio-ambiental, quando veio à tona o
assunto ‘mentalidade’. Nisso, o homem mais velho entre os quatro, permacultor, acabou
tecendo uma relação comparativa ‘infeliz’, dizendo ter trabalhado por algum
tempo em uma assentamento onde a ‘mentalidade negativa’ e a ‘vitimização’ dos
assentados é que fazia com que eles estivessem naquela condição (ruim, pobre ou
referente ao modo de se produzir e consumir dentro do assentamento), onde, com
esta suposta ‘mentalidade de vitimizados’, eles sempre culpam o governo e o
sistema pelos problemas que eram seus, provindos de suas mentes, simplesmente. Em
suma, como que, se vivendo em uma realidade superior e/ou paralela, o homem ignorou
totalmente a questão social e histórica (do processo histórico), afirmando que
era unicamente a mentalidade o problema daquele modo de vida dos assentados.
Acontece que, quem conhece assentamentos do MST (Movimento dos Trabalhadores
Rurais Sem Terra) sabe que a realidade não é a de pobreza ou de mediocridade
(internamente falando), nem na alimentação quanto no modo de vida, já que os
assentados produzem muito bem e com qualidade, respeitando o ciclo da natureza,
suas manifestações e seres vivos, buscando uma produção independente e mais
próxima possível da naturalidade, a partir do bom trato com as plantas, a
terra, os bichos e entre si próprios. Pelo menos os assentamentos que eu
conheço, assim procedem. Por isso, a fala do homem foi infeliz e reducionista.
Não sei se foi intenção, discurso ideológico ou um equívoco dele com o péssimo
uso deste exemplo de relacionar a questão da mentalidade atrasada do ser humano
com os assentados. Noutro momento, o homem mais jovem que dizia praticar yoga e
trabalhar com terapias, colocou a maconha junto da cocaína como sendo ambas ‘drogas
pesadas’, num tom de superioridade (ou superação?) frente a questão, sendo que,
no caso da maconha (uma erva natural, diferente da cocaína que é uma droga de
manipulação químico-laboratorial), ela não é considerada ‘droga pesada’, aliás,
‘o peso não está nesta erva em si, mas sim no modo e quantia de seu uso’, bem
diferente da cocaína (quem já leu ou estudou em boas fontes, ou até mesmo usou
estas drogas, sabe bem a diferença entre uma coisa e outra).
"A razão diz que o indivíduo não
pode lutar por aquilo que não conhece." (Hakim Bey)
A questão é que ambas as falas masculinas da live tiveram
tons de ‘superioridade’, principalmente ao descartar o fator social e histórico
que dá contexto para muito do que está além da mentalidade – e na mentalidade,
diga-se de passagem, reduzindo-se, eles, a falarem apenas desta mentalidade como
sendo o que move tudo. Mas não, não é simplesmente e unicamente a mentalidade (superestrutura)
que gera as condições existenciais, mas também o fator social-material
(infraestrutura). Por mais dignos e belos que possam ser seus trabalhos e
cultivos, estas falas se aproximaram muito do que se ouve comumente em igrejas
ou seitas que se arrogam e se colocam como lugares de ‘salvação’, conhecimentos
e formas de vida superiores às demais, onde a prepotência e a arrogância são as
principais características discursivas – ‘seus paraísos ou seus infernos pessoais
não são os mesmos que os meus’. Na hora lembrei de um filme do diretor inglês
Danny Boyle, que se chama ‘A praia’, e de certos líderes ditos religiosos, assim
como de palestrantes motivadores (leia-se coaching, auto-ajuda, etc.) que criam
em torno de si fiéis seguidores e reprodutores de suas palavras, intenções,
estereótipos, seguidores que os edificam quase que divinamente e assim servem na
manutenção de seus ‘negócios’, status e discursos.
"Todo idealismo é falsidade
diante daquilo que é necessário" (F. W. Nietzsche)
Fica fácil diminuir outras realidades mais difíceis que as
suas quando se fala de um lugar mais confortável (não só materialmente, mas
também discursivamente), e isso é muito comum neste meio cheio de vaidades e
egocentrismos, onde os discursos são sempre maiores do que a realidade. Por
isso relaciono a questão com a citação de Nietzsche no início deste texto.
Lutar contra monstros requer certo discernimento para que também não se torne
um deles. Na série-animação ‘Avatar, a lenda de Aang’, em um dos capítulos
aparece um personagem com o nome de ‘Jet’ que, na luta por mudar ou
revolucionar a realidade, acaba sendo afetado por ela, a ponto de cometer erros
que se somam naquilo que se diz ou pretende combater ou modificar. E é isso o
que vejo em muitos casos onde estes ‘modos de vida alternativos’ que contrapõem
o sistema (este caracterizado pelo modo de produção capitalista e a mentalidade
que a partir dele se constitui), acabam reforçando a partir deste ‘exclusivismo’
e seu discurso de ‘lugar ideal’, acima de uma associação com a meritocracia, o
próprio sistema, que todos devem saber, é elitista e segregador.
Alguns grandes pensadores ao longo da história, em suas obras
falaram sobre esta relação muitas vezes discrepante entre a prática e o
discurso. Lao Tsé no seu ‘Tao Te Ching’, K’ung Fu-Tsu (Confúcio) no seu ‘Analectos’,
Guy Debord no seu ‘Sociedade do Espetáculo’, e mais recentemente Byung- Chul Han
no seu ‘Sociedade do Cansaço’. A partir de Debord por exemplo, esses discursos
e as imagens ou aparências vinculadas a eles, são elaborações típicas do que
chamou de ‘sociedade do espetáculo’, esta que diariamente podemos ver nas fotos,
vídeos ou discursos pelas redes sociais. A partir de Chul Han, este ‘excesso de
positividade’ nos discursos, que também é a minimização ou falta de crítica e
auto-crítica (como o que aconteceu nesta live), caracteriza também o que ele
chama de ‘sociedade do cansaço’. Já para Lao Tsé, ‘todo o execesso é perverso’,
inclusive o da ‘falsa modéstia’, assim como, ‘não se pode mais colocar chá num
recipiente que já está cheio’, ou seja, quem está cheio de si próprio, que
julga suas convicções as únicas, melhores ou maiores, seu modo de vida, as
verdades absolutas e puras frente outras realidades menores ou impuras, já não
aprende nem caminha mais, e acaba assim
se tornando parte do ‘abismo’ (leia-se Nietzsche).
Em suma, existe muita consciência e coerência dos
que buscam, praticam ou vivem de forma ‘alternativa’ ao sistema, a esta cultura
mecanicista que engessa o pensamento, o corpo e a própria existência – porém estes
não ignoram o processo histórico. Mas também existe muita reprodução forçosa de
uma realidade que é bem mais complexa do que as aparências ou estereótipos, do
que os discursos, interesses pessoais e ideológicos, muitas vezes disfarçados
por trás de máscaras sorridentes de generosidade, que, melhor do que ninguém, e
da boca pra fora, tem a ‘gratidão’ como distanciamento, indiferença e auto convencimento...