Uma fábula do mundo real
Andava distraído, pisando em formigas sem querer. Pisava em
formigas que cruzavam encarreiradas meu caminho, com pedaços de folhas cortadas
cuidadosamente sobre suas cabeças. Decerto iam para seus ninhos estocar
alimento para o inverno que estava por chegar. E eu, com toda a imprudência
humana, as pisoteava, sem me dar conta de quantas mortes eu praticava naquele
instante. Formigas morriam enquanto eu andava, perdido na minha distração cotidiana.
Queria chegar cedo ao trabalho para impressionar o chefe. Pela primeira vez ele
diria: “Chegou cedo!” “O que houve? Caiu da cama?” De minha parte eu nem
responderia, se assim fosse. Puxaria logo o meu berro e dispararia três tiros à
queima roupa. Plantaria duas azeitonas no peito e uma bem na testa do infeliz,
que cairia para trás, como numa cena de um filme hollywoodiano feita em câmera
lenta. Seria um espetáculo pra mim e pros demais que odeiam o tipinho. Pelo
menos assim eu seria lembrado. Alcançaria certa fama nos noticiários da
televisão. Seria capa de todos os jornais sensacionalistas deste país. Meu pai
ficaria, pela primeira vez, orgulhoso do filho – “Pelo menos teve atitude uma
vez na vida!”, enquanto outros pais, negativamente balançariam suas cabeças.
Daria entrevistas e ganharia o respeito de alguns colegas de cela no presídio.
A classe empresarial iria ficar indiferente, mas os credores iriam me odiar. Os
devedores brindariam em minha homenagem (eis que nasce um novo herói!). A
mulher do chefe me agradeceria por livrá-la do marido detestável que chegava em
casa todo dia tarde e cheirando perfume e suor alheios. Sua amante choraria
lágrimas de crocodilo por perder as flores semanais, a lingerie semestral,
aveludada e vermelha, os jantares a luz de velas, regados de boa espumante e
olhares invejosos. Quereria minha morte, certamente! Eu não ganharia o próximo
salário, em compensação não precisaria mais olhar toda manhã para aquele
sorriso esnobe estampado naquela cara arrogante. Muitos seguiriam meu exemplo,
outros continuariam amedrontados no seus cantos, esperando o dia de folga e o
salário mínimo no final do mês, sonhando em um dia ter um carro como o do
chefe. Mas isso tudo não aconteceu. Mesmo eu chegando cedo, o chefe sorriu
sinicamente e sussurrou: “Tá achando que é melhor por isso?”
Para Lou Reed...
O mestre se foi depois de um ‘dia perfeito’.
Escreveu poesia, viveu seu tempo, compôs uma nova canção inspirado na vida
andeja, urbana e dos que vivem sem arrependimentos.
O mestre criador e seu ‘veludo
subterrâneo’ estão vivos na história dos que ouvem e pensam, sentem e transitam
para além do que é simplesmente estável.
* também publicado no jornal Gazeta de Chapecó, 31/10