Poderia
ganhar o prêmio de ‘A imagem do Século - made in Brasil’. A imagem do século é
uma imagem da decomposição. A decomposição de uma cultura ou uma nação que
talvez nunca tenha chegado a ser. E foram várias tentativas de justificá-la,
nenhuma convincente e com sucesso. Família rica (ou pelo menos classe-média
alta), branca, saudável (externamente e aparentemente), saindo à rua num
domingo ensolarado para ‘protestar contra a corrupção’. Moralizar uma situação
sendo imorais ou sem ética. Eis a contradição da imagem. * A imagem: ‘o
marido-pai, jovem e forte, acompanhado da esposa-mãe, também jovem, que vai
conduzindo um cachorrinho de raça, ambos vestindo as cores da bandeira do
Brasil, enquanto a empregada doméstica e babá, negra e pobre, vestindo uniforme
de trabalho, empurra o carrinho de bebê com os dois filhos do casal
classe-média-alta’. Em tempo de crises, isso mesmo, crises, no plural, pois,
uma das maiores crises, como bem relata a imagem, é a crise de valores, o pai,
sendo jovem e forte, bem poderia empurrar o carrinho dos bebês, não poderia? Questão
de justiça, gentileza ou generosidade aos mais velhos, ‘fracos’ e necessitados.
Em outros tempos, um ‘homem’ digno de sê-lo faria isso. Mas, os tempos são
outros. Depois das críticas a imagem, resumidamente, a justificativa publicada
do casal traz o mesmo discurso arrogante e medíocre de sempre: ‘pagamos bem a
empregada para que faça seu trabalho, se não estiver contente, tem a liberdade
de pedir demissão’. Neste tom a justificativa do ‘nobre’ casal representa parte
significativa de uma dita ‘classe média’ e ‘alta’ no Brasil que, de sensibilidade
e cultura (no sentido de certa profundidade intelectual e/ou refinamento
artístico, portanto, de sensibilidade humana) não tem nada, quem dirá de
consciência social e política. Só tem certo ‘poder’, ou melhor, dinheiro,
capital, e autoproteção ou certo privilégio por isso. Nada mais. Uma condição
tão miserável como tantos que desfilam suas soberbas, suas arrogâncias e
mediocridades pelas ruas e redes sociais da vida. E a manada reproduz esta
‘naturalidade forçada e artificial’ como se fosse a ordem natural das coisas,
ou um caso de ‘justiça’ pautada na crença da meritocracia. Assim as classes
sociais se dividem e uma explora a outra para manter seus privilégios e
confortos egocêntricos e bizarros. O sonho de muitos que ainda não chegaram lá
e o pesadelo de muitos que nunca vão chegar. A imagem é violenta, humilhante.
Pior que, o pouco que pude ler/ouvir da empregada, concorda com muito do que
seus patrões disseram na sua justificativa publicada. Sem consciência de
classe, a empregada é parte da decomposição do bom senso e da sensibilidade que
outrora cintilava pelas ruas, constituindo a imagem da humilhação, o que muitos
confundem com humildade. Pelo que falou em entrevista, sente-se parte de um
‘processo natural’ civilizatório-evolutivo - ou divino. E a imagem da
decomposição exala seu cheiro de um modo de vida em estado de putrefação,
compartilhado e integrado por muitos que, como o casal em questão, justificam
seus mundinhos mesquinhos e humanamente miseráveis com uma imagem soberba de
poder, até que um dia morram e suas imagens, junto à sensação de poder,
sucumbam na inevitável decomposição dos corpos já sem cor ou classe.
* também publicado no jornal Gazeta de Chapecó.