quarta-feira, 30 de outubro de 2019

Fetiches, idealizações, reproduções e seus reflexos socioculturais


"Acho que todo mundo gostaria de passar uma tarde com um príncipe, principalmente vocês, mulheres" (comentário de Jair Bolsonaro, atual presidente do Brasil, em visita à Mohammed bin Salman, príncipe herdeiro do trono da Arábia Saudita - uma teocracia fundamentalista e patriarcal).

Comentários como o do presidente, citado acima, são mais do que um simples comentário, por mais que seus reprodutores tentem diluir, amenizar sua fala, na insistência em repetir que tudo o que o presidente fala ‘é brincadeira, que Bolsonaro é um fanfarrão’, etc., o caracterizando com uma empatia que ele não tem. Mais do que um simples e infeliz comentário é um pensamento, uma ideia, um valor, uma crença e uma ideologia de uma mente ou um pensamento constituído a partir de certos valores, crenças, escolhas. Este tipo de ‘postura’ ou ‘posição’ tem lá sua raiz, e muitas vezes ela é ideológica, ou seja, vem de uma ideia e a partir de certos interesses, sejam eles pessoais ou grupais. Interesses que tem localização. O fato é que nossa cultura (civilização ou modo de vida, que envolve crenças, teorias e práticas) é tomada por certos conteúdos que carregam em si certos valores que, por sua vez, refletem na educação, na mentalidade, portanto, nas escolhas, atos e palavras das pessoas. Isso é comprovado quando olhamos para o que a população consome (pelo menos a maioria ou de grande parte dela), assim como o que se acredita, se reproduz ou se pratica. E é isso que forma a sociedade em sua ‘superestrutura’ (mentalidade, intelecto, racionalidade), e o que vai desaguar na ‘infraestrutura’ social (práxis, cotidiano). Ambas as estruturas formam a cultura (civilização ou modo de vida), que vai fornecer o conteúdo e apontar o rumo da sociedade (como ela pensa e age).

Além do ‘ideal do príncipe’, herança de certa ideologia elitista, eurocêntrica medievalista, amplamente difundida pela indústria cultural (desenhos, filmes, séries, novelas, discursos telejornalísticos, etc.), assim como pelas instituições consagradas (famílias, escolas, igrejas, clubes sociais, etc.) - ambos ‘aparelhos ou instrumentos reprodutores’ -, possuímos na sociedade uma gama muito grande de idealizações ou romantizações, como conteúdos ou produtos, sejam eles religiosos, político ideológicos ou comerciais mercadológicos. Um exemplo é a festa de Halloween, muito cultuada nos EUA, que nos foi inculcada e impulsionada culturalmente a partir da indústria cultural (sob tudo cinema e publicidade) e pelas escolas de idiomas, chegando até as escolas básicas e fundamentais, em muitos casos até às universidades. Para alguns críticos, esta festa ou cultura, é parte de um ‘colonialismo’, não necessariamente geográfico, mas mental/intelectual e cultural.

Pouco conhecemos da nossa cultura popular, do nosso folclore, que é riquíssimo, mas, somos motivados por inúmeros instrumentos, a reproduzir uma cultura que pouco ou nada tem haver com nossa cultura nacional, ou seja, com nosso modo de ser. Assim também é com o ‘discurso idealizado do príncipe’ que, de forma machista (novamente), o presidente Bolsonaro reproduziu publicamente, na intenção de elogiar o príncipe árabe e tal cultura patriarcal.

Estendo esta prática reprodutora de conteúdos e valores à outros espaços sociais (culturais, educacionais), relacionados diretamente com nossas ‘escolhas’ cotidianas. Por exemplo, quando eu escolho uma academia para malhar o corpo e não penso na saúde, mas na aparência, e quando eu penso na saúde física nesta escolha, mas não penso na saúde mental. Quando eu vou ao cinema e não me interesso pela produção nacional, optando sempre pelos filmes da moda, massificados, produzidos em Hollywood. Quando não leio literatura nacional ou alternativa, desprezo culturas como a nativa (indígena) e cabocla, me alimento seguindo a propaganda, com fest foods e afins, ignoro os saberes populares, as formas alternativas de vida e práticas socioculturais, assim como o conhecimento que não seja o ocidental, estou reproduzindo uma conduta, uma postura, uma posição que dirige meu modo de ser e estar no mundo - assim como, quando um professor escolhe este e não aquele conteúdo para trabalhar na escola e com seus alunos.

Nisso, é visível, infelizmente, o ‘fetiche’ de parte significativa do brasileiro em ‘coisas’ (conteúdos e/ou produtos) ligados a indústria cultural e do consumo, assim como, as velhas práticas fundamentadas no patriarcado eurocêntrico, na crença religiosa (platônica judaico-cristã) e científica (racionalista cartesiana), como se fossem as melhores ideias, concepções ou teorias do mundo, ou pior, as únicas. Este limite de conhecimento e visão, muitas vezes é devido a uma ‘preguiça mental e epistemológica’.

O caso do comentário (e de vários outros comentários) do presidente, assim como, a euforia e ênfase no Halloween, são exemplos de uma nossa ‘imaturidade’ ou ‘infantilidade’ cultural (talvez, falta de ‘consciência identitária’). Em outras palavras, muitas vezes ‘optamos’ pelo superficial, pelo convencional ou fácil, ao invés de investirmos naquilo que é mais profundo, autêntico, original, ou pelo menos coerente com nosso país, nossa vida – ou ainda conforme a necessidade. Como diriam alguns sábios do passado, estas escolhas talvez sejam mesmo ‘o dedo podre’ de parte da nossa população.

Nisso, muito do que é vinculado nos meios de comunicação de massa (TV, rádio, internet, jornais, revistas, etc.), tem este caráter superficial ou artificial. A Octoberfest e a Semana Farroupilha aqui no sul do país são outros exemplos desta ‘artificialidade cultural’ e massificação colonialista da mente (e do corpo, que também acaba sendo controlado ou policiado com isso). Como entretenimento, até vai, mas como ‘cultura’, expressão humana, vivência, são festas de pouca profundidade sócio-histórica, que reproduzem ideologias e não necessariamente condizem com a realidade ou a história.

Olhando para o fenômeno, vejo que os meios são tomados por esta artificialidade. Nossa cultura, portanto, é uma cultura repleta de artificialidades, onde as aparências e os discursos submetem a necessidade e a realidade. E aí temos um discurso como o do presidente (citação inicial), sonhado por muitos, assim como, o sucesso das festas também citadas. No Halloween, a máscara do Jason (filme ‘Sexta-feira 13), cabeças de abóboras, vampiros e bruxas estereotipados, assim como práticas copiadas dos EUA e a língua inglesa, se sobressaem, enquanto nosso folclore, nosso conhecimento popular, nossas festas e personagens, nossas línguas ou dialetos, o que é ‘alternativo’ e vai na contramão da massificação comercial e ideológica, são desconhecidos, ignorados ou depreciados por parte significativa da população que, boquiaberda, engole sem pensar ou sentir direito o sabor (saber) do que está ingerindo. E aí está nosso machismo de cada dia, nossa xenofobia e homofobia, nossos feminicídios, homicídios e suicídios, nossa falta de bom senso. E assim seguimos, brasileiros de fé no calendário, acreditando e penando, como escudos e depósitos de tais ideologias que nos tornam instrumentos, máquinas de manutenção e reprodução de certos valores e práticas socioculturais, nunca protagonistas.



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