sexta-feira, 27 de março de 2015

Leituras do Cotidiano

O ciclo

...os anos haviam se passado e tudo parecia tão monótono, tão frio. Eva envelheceu, e isso a deprime. Adão, por sua vez, parece não se importar: “Muié, me traz mais uma cerveja!”. Entretanto, os dois continuam juntos. O amor de outrora já não sorri mais com a mesma jovialidade e alegria dentro da pequena casa, cujo tempo também deixou seus sinais de degradação. Eva continua na rotina: cozinhar, lavar, passar, sonhar... Adão também: comer, beber, jogar, dormir, reclamar... O casal teve três filhos. Dois homens e uma mulher. Um deles já morto. O acidente de trânsito foi fatal. “Morreu novo o pobrezinho!” - a cada lembrança, lamenta a mãe. O outro, um advogado de porta de cadeia, beberrão e solteiro, viciado em cigarro paraguaio e no jogo de baralho, passa os dias trabalhando, fumando, bebendo, jogando e pela janela, mirando as pernas das jovenzinhas estudantes que passam pela rua em frente ao Fórum. A única filha mulher, mãe de dois barrigudinhos, professora pedagoga da rede pública, separada do primeiro marido e ‘juntada’ com um caminhoneiro, envelhece sem maiores emoções na vida. Todos muito frustrados com o mundo em que vivem, mas vivos e confiantes no amanhã. Todos ‘assistidores’ de telenovela, leitores de autoajuda e da revista Veja e crentes na volta do salvador. Todos brasileiros de fé no calendário e torcedores de algum time de futebol. Todos, herdeiros de uma cultura, de uma tradição, de um modo de vida que ultrapassa gerações e que um dia vai acabar: “Graças a Deus!” - enaltece aos céus Eva, a mãe de tudo e de todos. Adão, depois do futebol e da quarta cerveja, passa a mão na barriga, chuta o cachorro que descansa na porta da sala e vai dormir. Amanhã é quinta-feira e a vida prossegue... 

Os anos haviam se passado e tudo parecia tão monótono, tão frio. Eva envelheceu, e isso a deprime. Adão, por sua vez, parece não se importar: “Muié, me traz mais uma cerveja!”.


Convertido, redimido e enrustido...

Da sua boca não saiam mais palavras lúcidas. Resolveu-se por delirar, enlouquecer, esquecer que um dia tivera razão. Antes, aprofundou-se nos estudos filosóficos e sociológicos. Fora ateu. Lia Voltaire, Bacon, Sartre, Foucault, Weber, Marx, e esporadicamente se divertia com Cioran e Nietzsche. Gostava das margaridas e do cheiro delas, assim como das garotas e seus cheiros. Odiava teatro e televisão, aliás, tudo o que considerasse cênico. Seu mundo era o das letras e do pensamento. Era seco e ouvia pouco os outros. Um dia tudo mudou. Deus passou a existir e ter sua importância. Cioran, Nietzsche e os outros se tornaram dispensáveis. Teatro e televisão adquiriram sentido. Agora suas rezas atravessavam a noite, substituindo as leituras de outrora. As margaridas perderam seus cheiros assim como as garotas, e ambas já não importavam mais...


* também publicado no jornal Gazeta de Chapecó, 27/03. 





E o fator cultural?

“Um grande equívoco de parte significativa da dita esquerda brasileira é achar que o movimento (leia-se protestos do último dia 15) é feito só por grupos de ‘elite’. A ideologia é da elite, os interesses são da elite, o dinheiro é da elite, os porta-vozes são vozes da elite, mas essa ideologia é ardilosa o suficiente pra infectar as mentes de todas as camadas sociais. É uma ideologia baseada em medo, ódio e ignorância, e infelizmente esses elementos tem uma força de mobilização muito poderosa, mais do que a razão e a solidariedade.” Foi mais ou menos assim que o historiador e professor da UFFS, Ricardo Machado, descreveu um pouco do contexto sociocultural e político atual, referente às recentes manifestações pelo país. Ou seja, além de politização (o que muitas vezes não passa de ‘doutrinamento’), precisamos de consciência artística e filosófica (ação na cultura), caso contrário, continuaremos vulneráveis a forma mais forte de ideologia que pode existir, a ignorância. Já diria Einstein que, ‘é mais fácil desintegrar um átomo do que um preconceito’. Portanto, é fundamental que, o governo e a esquerda brasileira (sob tudo a que ocupa espaços oficiais e institucionais) comecem a fazer o dever de casa, armando a sociedade de conhecimentos diversificados e aprofundados, pois, nem só de consumo e cartilha vive o povo. 

* também publicado no jornal Folha do Bairro.



quinta-feira, 19 de março de 2015

Cena cotidiana

Todo dia os carros passam sempre cheios de pessoas, poesias e outras inutilidades. Todo dia o fedor do gás que sai das descargas dos carros enche meu organismo de sujeira (e meu saco!), e eu sufoco, aos poucos, dia após dia. Todo dia os carros atrapalham o trânsito. Meus passos vivem castrados por isso, enquanto eles andam e andam, donos do espaço físico do chão. Todo dia os carros atropelam cães ou galinhas ou crianças ou velhos ou tontos como eu - que caminham nas nuvens. Todo dia os carros se esbatem como gladiadores na arena de um grande circo armado para o entretenimento. E todo dia a humanidade passa, imbecilizada, junto aos carros, atropelando formigas, baratas e outros bichos que trafegam sem serem notados. Todo dia, todo o santo dia, os carros nascem e morrem, assim como as pessoas, as formigas, as baratas, os sonhos... Assim como eu e você.



 *  Um poema que passa, como um carro, como uma informação, por nós, e que, às vezes, nem notamos, entorpecidos pela passagem das cenas cotidianas urbanas e suas poluições. Um carro não é um poema. Ele é útil, o poema não. Assim como a vida que, não tem utilidade, apenas é... pra ser vivida, assim como, o poema, que é pra ser sentido, vivido. O carro, este passa e morre - e às vezes mata no final. 


* também publicado no jornal Folha do Bairro, 13/03.



Leituras do Cotidiano

Conflitos e contradições...

Manifestações turísticas (?)

Percebendo para além da 'emoção', eis que vejo:

Em Salvador, Bahia (lugar que conheço pessoalmente, conste!), onde a grande maioria da população é afrodescendente (negra), só vi uma banda musical que não era composta por brancos. A grande maioria nas fotos e imagens, branquinhos, branquinhos. ‘Fenômeno’ interessante, não?!

A maioria dos manifestos do dia 15 ostentaram em seus cartazes: 'Fora Dilma' ou 'Impeachment', ao invés de algo realmente consistente como: 'Reforma Política, Já!'. Qual é o motivo deste furo?

Nos manifestos ditos 'apartidários' pelo país, palavra de ordem: 'Fora PT' e/ou 'Fora Dilma', sendo que, se o movimento fosse realmente 'apartidário' como, ingenuamente (ou 'ignorantemente') alguns insistem em dizer (outros intencionalmente/ideologicamente), teriam cartazes e faixas dizendo também: 'Fora PMDB, PP, PSD, PSDB', entre outros. Questão de lógica, não? E a 'coerência'?

Alguns acreditam piamente que o 'Fora Dilma' tem por objetivo principal combater a corrupção no Brasil e moralizar a nação. Ingenuidade? Ignorância? Pretexto? Interesse? Se fosse um caso de coerência, estariam pedindo também a queda de Eduardo Cunha (PMDB), Renan Calheiros (PMDB) e muitos outros. Há quem diga que, por parte de muitos, apenas uma maneira de passar o tempo e de preencher a pobreza existencial entre uma novela e outra...

Entidades empresariais/industriais apoiando os manifestos, enquanto símbolos da 'maçonaria' apareciam em cartazes. Neste mato tem cachorro...

Um bloco inteiro no Fantástico da Globo mostrando imagens das manifestações pelo país e não apareceu nenhuma faixa ou cartaz pedindo 'Reforma Política'. Veja só que coisa...

A 'Guerra Fria' ainda não terminou. Estamos no 'terceiro turno' das eleições presidenciais: muitas manifestações pedindo 'intervenção militar' e 'fora comunismo', 'o Brasil não é Venezuela', entre outras 'pérolas'. Em suma, baita causa, eim?! 

Tá bem, eu concordo! Separemos então o Brasil. Reacionários pró-militarismo de um lado, nós (eu) do outro. Fechou! 'Viva o separatismo!'


O bom e velho Buk em seus tiros certeiros:

“Nós nascemos assim, nisso: Nos hospitais que são tão caros, que são baratos para morrer; num país onde as cadeias estão cheias e os hospícios estão fechados; num lugar onde as massas elevam idiotas em heróis ricos.”


Qualquer semelhança com a realidade, não é mera coincidência.



* também publicado no jornal Gazeta de Chapecó.



terça-feira, 10 de março de 2015

Leituras do Cotidiano, 06/03

A farra do boi

Ele corre alvorotado e muge em coro pelas ruas da cidade. Mal sabe que depois da farra vai voltar para seu pasto, sua ração, preso no cercado, ou em casos mais extremos, direto para o matadouro. Seu motivador é aquele mesmo que o alimenta com os restos da sua riqueza acumulada. Ele se junta a outros da sua espécie para reproduzir mugidos e atos irracionais, sempre ferrado a brasa e direcionado pelos latifundiários que estão por trás da sua cultura bovina. Gado marcado que não sabe o que faz. Ele grita, esperneia, usa força e bestialidade para tentar derrubar as porteiras, cercas e aramados que o circundam, mas que ele mesmo não vê. Ele acha que é inteligente e rebelde, mas não passa de mais uma cabeça numérica pertencente a um plantel, a uma boiada ou manada que só age sob a orientação do seu dono, patrão, fazendeiro ou pastor. Ele grita contra aquilo que não conhece, não aceita o diferente. Ele trabalha como um condenado e é mal tratado, torturado, surrado, explorado, usurpado, e no fim, agradece ao patrão-fazendeiro quando ganha seu pasto ou sua ração. Ele vive a remoer. Ele tem pouca visão e memória curta. Corre bastante e não chega a lugar algum. Ele vive a reproduzir e não sabe da força que tem. Alguns dirão: ‘Ainda bem!’

Obs.: Qualquer semelhança com algumas realidades humanas, não é mera coincidência.
·         Dedicado aos estúpidos que reproduzem sem pensar.

Perguntas de um cidadão que lê:

1. As ditas ‘entidades de classe’, ou ‘empresariais’ como a FIESC, ACIC e CDL, empresas de transporte (público), algumas Igrejas, alguns muitos políticos e partidos, grandes empresas e latifundiários, são favoráveis a ‘taxação das grandes fortunas’ como foram favoráveis aos ‘bloqueios dos caminhoneiros’?

2.  Na maior audiência pública de Chapecó para debater a necessidade de ampliar os horários de atendimento das creches para beneficiar, principalmente, os trabalhadores das agroindústrias e do comércio, essas ditas ‘entidades de classe’ liberaram seus funcionários para participarem? Manifestaram-se apoiando a iniciativa?

3. Chamam nordestino de vagabundo, defendem intervenção militar, invadem residência, hostilizam as diferenças, incitam o ódio e a violência, pedem Impeachment sem argumentos, mas não sabem nada de política nem de democracia. Que mudança é esta a que reclamam?


* também publicado no jornal Gazeta de Chapecó.





domingo, 8 de março de 2015

Mulheres...

Mulher, menina que cresceu, mas que continua sendo menina. Um dia quis ter uma filha - e às vezes, ainda quero. ‘Que ela tenha os seus olhos e os nossos carinhos!’ Uma menina. Uma mulher. Sendo homem amo as mulheres como amo as meninas. Mas se fosse mulher, seria o mesmo, amaria igual. Um caso de sentir. E é sentindo assim que, de repente, lembro-me de algo que escrevi um dia. Algo que num trecho dizia: 

“Tenho características de um homem bom. Só características, pois sou mau como todos os outros homens na minha idade. Mas logo, logo, sei que já estarei ficando bom de novo – ou pela primeira vez na vida - como as meninas da minha rua, tão pequenas e tão felizes! Daqui a pouco estarei mais velho. Nunca voltarei a ser este homem mau de meia idade, adulto, duro e metódico. As mulheres são mais sensíveis. Nem todas, eu sei, mas grande parte delas. Nós, homens, não temos este privilégio. As meninas cantam e dançam, enquanto os meninos gritam e correm. A natureza quis assim. Deus quis assim. E os dois, nos enganaram direitinho”.


·         Dedicado a todas as mulheres-meninas da minha vida. 


* também publicado no jornal Folha do Bairro, 06/04.



segunda-feira, 2 de março de 2015

Problema cultural...

Pela televisão as reclamações, as críticas, os discursos de empresários de família com histórico de corrupção, degradação ambiental e exploração do trabalho. Briga entre motoristas nas filas de postos de gasolina pelo combustível. 'Pessoas de bem' que abastecem e dão no pé sem pagar, aproveitando o tumulto. Postos de gasolina e comércio que aumentam seus preços tirando proveito da situação. Políticos e seus partidos responsáveis por parte desta 'calamidade' que discursam moralistas e hipócritas. Mídia obesa, medíocre e espetaculosa que se favorece ideologicamente e comercialmente da situação. Parte dos reclamantes tem carro como status - e ambos reclamam do governo, da corrupção, etc. 'Está um Caos, dizem eles'. Mas não, isso não é Caos. Mas, cadê a ciclovia? As bicicletas circulando? Cadê o trem? Cadê o espaço descente para pedestres? Cadê o transporte público eficiente, de qualidade? Cadê as formas 'alternativas' de combustível, energia e transporte? Um colapso, talvez, transforme esta contradição. Enquanto isso, o Estado é usurpado, como se tudo fosse imediato, atual, recente. Como se a cultura não tivesse nada a ver com isso tudo. Mais que economia, vivemos numa cultura, num modo de vida, com costumes, práticas e pensamentos. E para que algo realmente mude, não basta falar, discursar, reclamar, é preciso ser.


* também publicado no jornal Folha do Bairro, em 27/02.



Leituras do Cotidiano

Brasil, uma mesa de jogos

Antes mesmo das eleições, eu havia publicado textos sobre a ‘arquitetura’ em torno do Estado brasileiro, do governo, pensada pelo poder ‘oculto’ de grandes empresários, industriais e latifundiários, com a colaboração de políticos ligados aos seus interesses ‘privados’ e líderes religiosos (também com seus interesses ‘privados’ a respeito). Num primeiro momento tentaram (e quase conseguiram) por meio das eleições, ganhar o poder (governo). Depois publiquei outros textos falando do campo minado que, os mesmos grupos de poder, tornavam o Estado brasileiro (enquanto instituição administrativa e político-ideológica). Primeiro foi a tentativa de destruir os projetos sociais (bolsas, cotas, acessos a educação, etc.). Agora, depois do campo já minado, é hora de explodi-lo (ou implodi-lo internamente). E eis o que está acontecendo no país. Com o apoio da grande e oficial mídia, parte do setor privado (os que concentram renda, terra e poder), através dos vieses publicitário-midiáticos, ideológicos e políticos oficiais/institucionais (leia-se congresso nacional), fazem desta realidade um jogo na intenção de manterem e até ampliarem seus ‘privilégios’ que são ‘históricos’, herança de um passado horrendo que permitiu toda a concentração de poder e riqueza para poucos e a exploração existencial, humana, econômica, social, de muitos (para quem estuda ou compreende de história e sociedade, isso é claro). E hoje, agora, estamos aí, vendo e ouvindo muita coisa vinda de excessos, exageros, reproduções e discursos ideológicos, tudo feito para a confusão de um país que, creio, nunca teve um ‘espírito de nação’ e, quando começou a ter, eis os acontecimentos atuais. Eles, os ‘semi-deuses’, reais ‘donos do poder’ deitam e rolam, cagam, defecam mas escondem suas ‘produções’ sádicas (perdoe-me Marquês literário, pela relação). E por parte do governo atual, falta culhão, posição, postura! Se empenhou em          ‘melhorar’ a economia, facilitar acessos (o que dentro do capitalismo democrático, talvez seja o melhor a se fazer), ‘democratizou o capital’ mas não deu conta do fator ‘cultural’. Riqueza melhor distribuída sem politização, bons conteúdos, valores artísticos e filosóficos, acaba alimentando ainda mais um sistema ou modo de vida entorpecido por pessoalidades e mediocridades. E agora explodem manifestações que não pedem pelas urgentes e necessárias reformas que o país precisa (reforma política, judiciária, midiática, educacional, tributação sobre riquezas estacionárias, etc.), mas pedem o mesmo de sempre: ‘fagulhas dos fragmentos’, ou seja, ‘pessoalidades’ dadas por interesses privados e status social. Eis o efeito de toda uma ‘história’ pobre em conteúdo e rica em banalidades. E ‘Eles’, os ‘donos do jogo’, jogam com suas cartas marcadas, pois o ‘jogo’ é deles. E agora, o que será? Sem ser pessimista, mas, se aprende a jogar como um bom jogador que consegue reverter o jogo, se desiste dele de uma vez ou se vira a mesa? Façam suas apostas senhores!


* também publicado no jornal Gazeta de Chapecó, em 27/02.