O ciclo
...os anos haviam se passado e
tudo parecia tão monótono, tão frio. Eva envelheceu, e isso a deprime. Adão,
por sua vez, parece não se importar: “Muié, me traz mais uma cerveja!”. Entretanto,
os dois continuam juntos. O amor de outrora já não sorri mais com a mesma
jovialidade e alegria dentro da pequena casa, cujo tempo também deixou seus
sinais de degradação. Eva continua na rotina: cozinhar, lavar, passar,
sonhar... Adão também: comer, beber, jogar, dormir, reclamar... O casal teve
três filhos. Dois homens e uma mulher. Um deles já morto. O acidente de
trânsito foi fatal. “Morreu novo o pobrezinho!” - a cada lembrança, lamenta a
mãe. O outro, um advogado de porta de cadeia, beberrão e solteiro, viciado em
cigarro paraguaio e no jogo de baralho, passa os dias trabalhando, fumando,
bebendo, jogando e pela janela, mirando as pernas das jovenzinhas estudantes
que passam pela rua em frente ao Fórum. A única filha mulher, mãe de dois
barrigudinhos, professora pedagoga da rede pública, separada do primeiro marido
e ‘juntada’ com um caminhoneiro, envelhece sem maiores emoções na vida. Todos
muito frustrados com o mundo em que vivem, mas vivos e confiantes no amanhã.
Todos ‘assistidores’ de telenovela, leitores de autoajuda e da revista Veja e
crentes na volta do salvador. Todos brasileiros de fé no calendário e
torcedores de algum time de futebol. Todos, herdeiros de uma cultura, de uma
tradição, de um modo de vida que ultrapassa gerações e que um dia vai acabar:
“Graças a Deus!” - enaltece aos céus Eva, a mãe de tudo e de todos. Adão,
depois do futebol e da quarta cerveja, passa a mão na barriga, chuta o cachorro
que descansa na porta da sala e vai dormir. Amanhã é quinta-feira e a vida
prossegue...
Os anos haviam se passado e tudo
parecia tão monótono, tão frio. Eva envelheceu, e isso a deprime. Adão, por sua
vez, parece não se importar: “Muié, me traz mais uma cerveja!”.
Convertido,
redimido e enrustido...
Da sua boca não saiam mais palavras lúcidas.
Resolveu-se por delirar, enlouquecer, esquecer que um dia tivera razão. Antes,
aprofundou-se nos estudos filosóficos e sociológicos. Fora ateu. Lia Voltaire,
Bacon, Sartre, Foucault, Weber, Marx, e esporadicamente se divertia com Cioran
e Nietzsche. Gostava das margaridas e do cheiro delas, assim como das garotas e
seus cheiros. Odiava teatro e televisão, aliás, tudo o que considerasse cênico.
Seu mundo era o das letras e do pensamento. Era seco e ouvia pouco os outros. Um
dia tudo mudou. Deus passou a existir e ter sua importância. Cioran, Nietzsche
e os outros se tornaram dispensáveis. Teatro e televisão adquiriram sentido.
Agora suas rezas atravessavam a noite, substituindo as leituras de outrora. As
margaridas perderam seus cheiros assim como as garotas, e ambas já não
importavam mais...
* também publicado no jornal Gazeta de Chapecó, 27/03.