“A repercussão da entrevista de Monica Hass na elite
política local”
* Artigo
do amigo, historiador-pesquisador e professor, Claiton Marcio, publicado em 09/05
no jornal "A Gazeta de
Chapecó" – reproduzido na íntegra...
O debate em torno da entrevista da professora
Monica Hass sobre o “Caso Marcelino” tem repercutido em diversos espaços e
inquietado diversos atores. À esta entrevista, dois vereadores da atual
legislatura (Marcio Sander e Dirceu
Cecchin) responderam, explicitando seu ponto de vista sobre as afirmações da
socióloga. As opiniões, contrárias ou favoráveis, também estão circulando nas
redes sociais desde que “A Gazeta de Chapecó” deu visibilidade à questão. O
debate provocado pela professora gerou reações contrárias por parte dos dois
vereadores acima citados, que discordam principalmente da questão da existência
de um “mandonismo” local, que serve de elo explicativo entre o caso do
linchamento (1950) e a morte de Chiarello (2011). Em sua entrevista, Hass
afirmou que “na verdade a gente tem uma situação que é a mesma: nós temos uma
história de um mandonismo local muito forte na região Oeste como um todo e
principalmente em Chapecó. No estudo que foi feito sobre o linchamento isso
ficou muito evidenciado: quais são as práticas políticas que as pessoas exercem
dentro da sua busca e manutenção pelo poder, que é o clientelismo, a corrupção,
a violência, o nepotismo, os meios de comunicação. Essas são práticas políticas
que acompanham a história política brasileira.”). Vereador em sua primeira legislatura, Cecchin expõe
sua discordância da seguinte forma: “O que não podemos concordar é com a íntima
relação que fazes com o 'linchamento' ocorrido no passado e a morte do
vereador, dando a entender que o sistema de 'coronelismo' ainda impera na
Cidade de Chapecó, totalmente contrário às emanações legais.” Este argumento,
muito próximo dos modelo idealista dos princípios liberais, argumenta que as
instituições sociais promovem na atualidade uma verdadeira “redenção” em
relação ao passado. Em outras palavras, se existiu
mandonismo/coronelismo/linchamento antigamente, na atualidade temos uma
realidade diferenciada e complexa, que nos “desprende” enquanto sociedade
chapecoense e oestina de nosso passado, ao menos no argumento do vereador. Mas uma coisa é certa: não há discordância sobre os
elementos do passado, uma vez que Chapecó foi colonizada pela Bertaso &
Maia, onde um de seus sócios era exatamente um Coronel, de nome Ernesto
Bertaso. Mas se o processo de industrialização brasileira teria, aos poucos,
dissolvido o poder dos antigos coronéis, existem leituras que observam
“mutações” neste instrumento de dominação, ou seja, que o tradicional poder
local analisado em livros clássicos como “Coronelismo, Enxada e Voto” (de
Victor Nunes Leal, publicado em 1948) teria assumido outras feições, tal qual o
também clássico exemplo de Antônio Carlos Magalhães durante a década de 1990.
Assim, não fala-se em coronelismo ou mandonismo imaginando uma figura do
passado, notadamente da Primeira República (1889-1930), mas metamorfoseada e
“atualizada” no contexto em que vive. Não é possível analisar os recursos de
poder utilizado por figuras políticas como José Sarney ou Siqueira Campos
(governador do estado do Tocantins), por exemplo, sem se remeter aos conceitos
de mandonismo ou coronelismo. Mas é necessário “atualizar” este conceito e
buscar entender o mandonismo destes em uma sociedade complexa. E se um “coronel” hoje não atua como à maneira de
Bertaso ou de outro coronel de seu tempo, é exatamente porque são separados por
uma rede complexa de elementos que é expressa na sociedade brasileira atual: um
contexto que os diferencia, uma ruptura com o passado. Mas é este mesmo termo,
o contexto, que aponta semelhança no fato das duas figuras, o coronel do
passado e o coronel metamorfoseado do presente, exercem poder sobre a sociedade
tendo como ponto de partida os interesses de grupos privados sobre o bem
público, utilizando-se da coerção para alcançar seus objetivos. Isto representa
uma continuidade, uma semelhança entre os dois contextos. Este é o argumento de
Monica Hass quando afirmou em sua entrevista que “hoje você tem um contexto
muito mais complexo, tanto que naquela época não se tinha esses movimentos
sindicais fortes que se tem agora, mas de qualquer forma o sistema é o mesmo,
não muda, ele se adapta aos novos contextos, às pessoas que estão no poder,
envolvidas nos seus interesses políticos, econômicos, pessoais.” Desta forma, quando a professora aponta semelhanças
entre os contextos econômico e político (e não os fatos) do linchamento e do
caso Chiarello, ela se remete a dois momentos históricos diferenciados
(portanto, uma ruptura), mas com uma linha de interpretação comum, ou seja, a
possibilidade de violência de origem política nos dois casos. Mas se existe uma distância temporal entre 1950 e 2011, como é questionado
pelo vereador Marcio Sander que “não aceita a classificação de Chapecó como
cidade de mandonismo pela violência que viria desde a década de 50 com a
chacina até os tempos atuais com o episódio a que se refere”, (de acordo com o
artigo), a professora poderia se apoiar em outros fatos que envolvem a cena
local e que expressam o mandonismo em outras épocas. E neste sentido, posso
auxiliar, uma vez que estudei por anos a consolidação do regime militar em
Chapecó e a configuração política após 1964 no município (que envolvia tantos
outros hoje emancipados).
Se não são conhecidos ou não repercutiram
socialmente possíveis crimes de ordem física durante o período (1964-1985) no
município, como no caso de 1950 e 2011 (e em nível estadual, como na cassação e
posterior “desaparecimento” do Deputado Estadual Paulo Stuart Wright em 1973),
a rearticulação político-partidária promoveu expurgos diversos na vida pública.
E isto é exemplo de mandonismo local articulado com o poder central, ou seja, o
executivo nacional, uma vez que não é possível dizer que pessoas como o
ex-prefeito Sady De Marco (1967-1969) e o ex-Deputado Estadual Genir Destri
simplesmente “suicidaram-se” politicamente. Ambos foram cassados, como aponto
em meu relatório de pesquisa, em função de denúncias de “subversão” promovidas
por lideranças políticas locais tradicionais vinculadas à ARENA (Aliança
Renovadora Nacional), partido de apoio ao regime militar. Em resumo, a cassação
(e por consequência, a anulação política e social de duas lideranças ascendentes
na vida partidária regional e estadual) aconteceu em função de denúncias
promovidas junto aos militares por um vereador e um deputado estadual,
herdeiros da ordem política coronelista. E quem assumiu a prefeitura após a
cassação de Sady de Marco? O genro do Coronel Ernesto Bertaso. Exemplos não faltam nas décadas de 1980 e 1990 sobre
a ascensão do poder político de outras famílias e suas práticas de mandonismo,
e que podemos aprofundar em um outro momento. O argumento é que nesta linha de
pensamento existem elos não apenas entre 1950 e 2011, mas entre 1950 e 1964
(rearticulação do poder local/mandonismo sob a bandeira da ARENA), 1950 e 1969
(cassação de Sady e Destri), 1950 e a “peste suína africana” de fins da década
de 1970 (poder da agroindústria), 1950 e a tentativa frustrada de cassação do
ex-prefeito José Fritsch (1997), ou seja, que a utilização de instrumentos de
coerção sempre existiram e continuam existindo. Não apenas em Chapecó,
evidentemente, mas o que chama a atenção de todos é a possibilidade de
assassinato de um vereador de oposição, o que remete sim a uma construção
histórica passada. Remete a um passado que as elites locais tentaram e tentam
sistematicamente esquecer. E por isso a pesquisa da Monica e sua entrevista em
“A Gazeta” continuam incomodando.
Entendo, neste sentido, que o episódio do
“linchamento” é um ato fundante na história chapecoense, ou seja, depois desse
acontecimento o passado ficou pesado demais para que as elites políticas
pudessem carregar em seus ombros. A própria Monica Hass demonstra em seu livro
que, por anos, não se vendeu lote algum na cidade após a chacina. Foi preciso
por gerações esconder o passado, ocultar sua violência, e aos poucos criar a
ideia de um presente de “progresso”, onde a “perseverança das famílias que aqui
chegaram” (como afirma Sander) promovem o desenvolvimento da região.
Como forma de interpretar essa história, me agradam
as palavras do pensador alemão Walter Benjamin (1892-1940) sobre o quadro
Angelus Novus, de Paul Klee (1920): “Existe um quadro de Klee intitulado
Angelus novus”, escreveu Benjamin em sua IX tese sobre o conceito de história.
“Nele está representado um anjo, que parece na iminência de afastar-se de algo
em que crava seu olhar. Seus olhos estão arregalados, sua boca está aberta e
suas asas estão estendidas. O anjo da história deve parecer assim. Ele tem o
seu rosto voltado para o passado.” O “anjo da história chapecoense”, remetendo
à ideia de Benjamin, olha com estupor para um passado de violência. Ele não faz
distinção entre 1950 e a atualidade, uma vez que ele enxerga diferentes formas
de violência nas diferentes ocasiões. Um emaranhado de violência simbólica,
física, psicológica, política... mas que não deixam de ser expressões de
violência. E quando Benjamin continua seu texto afirmando que
“do paraíso sopra uma tempestade que se emaranha em suas asas e é tão forte que
o anjo não pode mais fechá-las”, então, “esta tempestade o impele
irresistivelmente para o futuro, ao qual volta as costas, enquanto o amontoado
de escombros diante dele cresce até o céu. O que nós chamamos de progresso é
essa tempestade.” O anjo da história olha para o passado e é violentamente
empurrado para o presente, que evita olhar, porque no presente ainda persiste a
semente da violência. Ele olha para 1950 e o “progresso” o empurra
violentamente para o nosso tempo. Em resumo, as diversas formas de violência
expressas no mandonismo local são constitutivos desta e de outras sociedades e,
por este motivo, perduram ao longo do tempo, expressos de forma variada: se a
elite política prefere mostrar aos demais que Chapecó é uma “cidade de
progresso”, onde “os que aqui chegaram venceram”, ocultam os destroços que
ficaram pelo caminho. Exemplo disso é o vídeo “Eu sou Chapecó”, difundido em
2011 durante a realização da EFAPI, e por isso relacionada ao poder público,
que busca engrandecer o “povo trabalhador” e que justamente não menciona esse
passado que todos querem esquecer (sequer um índio é mostrado no vídeo sobre a
história da cidade, mas somente este tema pode resultar em um artigo).
Não posso generalizar, mas é possível pensar que na
academia e em outros espaços de estudos a maioria dos pesquisadores concordará
com o argumento da professora Monica Hass, uma vez que atitudes vistas como
“individuais”, como é o caso de um suicídio, são na verdade resultado de
coerção externa e, portanto, social. Durkheim publicou seu clássico estudo
sobre o tema há mais de cem anos (1897). A sociedade “suicida” o indivíduo,
pois uma ação individual é resultado do meio social que o cerca (não é preciso
mencionar que: 1) existem muitos estudos atualizados sobre o tema; 2) que não
há unanimidade na tese de suicídio no caso de Chiarello, uma vez que o primeiro
laudo apontou homicídio). E neste sentido, a autora expõe que aquilo que o
Fórum em defesa da vida, os movimentos sociais e outras entidades reivindicam,
por outro lado, não se resume apenas a uma rigorosa investigação da morte de um
vereador e liderança política, mas também a continuação da investigação e as
conclusões sobre as denúncias feitas por Chiarello. Tão grande quanto o trauma
da perda de um companheiro, o temor social destes movimentos é que a divulgação
de um laudo de “suicídio” apague ou coloque em segundo plano as denúncias
feitas, deslegitimando quem as fez. Se isto acontecer, é reflexo sim de
continuidade do mandonismo local, que silencia as vozes divergentes e oculta
suas ações. E é possível pensar que neste momento, o ex-vereador
olha de onde estiver para o passado chapecoense, enxergando-o como violência e
tentativa de esquecimento.
Dr.
Claiton Marcio, historiador e professor de história na Universidade Federal da
Fronteira Sul (UFFS), campus Chapecó-SC.