quarta-feira, 16 de março de 2011

Um poema (?)


pela noite, vagamente...

vou pela avenida Fernando Machado
recoberto pelo sereno da madrugada
e os carros passam lentamente a procura de uma diversão qualquer
alguns buzinam achando que eu estou pra isso
mas não, eu não sou o que pensam
e nem estou disponível
continuo meu caminho e percebo o movimento a minha volta
entre travestis luxuriosos e putas decadentes, estou eu
um escritor anônimo que nunca publicou um só poema
misturado ao que restou do dia
como tantos outros, um sobrevivente

uma bela pessoa me para e pede se tenho fogo
se travesti ou mulher, não sei
é tão gente que eu não distingo
saco do bolso do meu casaco o avio:
“fiat lux!” – & a bela pessoa sorri
eu não estou afim de saber se é ou não mulher
então vou direto ao assunto:
“não, hoje não meu bem!”
a bela pessoa sorri novamente
saio de cena em meio à fumaça da tragada do cigarro
da bela pessoa que não faço questão de distinguir
& prossigo abaixo do sereno que se intensifica

ando por alguns metros,
quadras e quadras ficando pra trás
meus sonhos e minhas vontades abandonadas
junto aos destroços deste fim de mundo
uma criança disputando o lixo com um gato pestilento me confunde
e uma dor aguda se apossa da minha consciência
perco a razão e uma lágrima queima meu olho, mas não cai
sinto nojo da humanidade por isso
o cheiro de azedo do álcool se mistura com outro cheiro,
algo entre sêmen e mijo
ou um perfume vagabundo que já envelheceu num corpo cansado

num bar que separa uma igrejinha pentecostal de um drive in
mato minha dor com uma cerveja barata
enquanto belisco um petisco rançoso
o bodegueiro tem cara de bandido e a única garçonete da espelunca
tem ares de uma arrogância aristocrática
três pessoas além de mim estão no bar:
um casal que se amassa numa excitação selvagem num canto escuro do bar
e um homem bem trajado que escreve algo a lápis num bloco imundo

sentado no balcão passo alguns minutos em silêncio
e enquanto bebo minha cerveja
ouço uma música sertaneja-chorosa que fala de traição
saída de um radinho AM de cima de um armário velho

a garçonete arrogante de ar aristocrático cantarola
acompanhando a música chorosa do radinho
e o casal continua na sua excitação
enquanto o bodegueiro me encara por detrás do balcão
isso tudo não me intimida e eu termino meu trago em silêncio
nesta noite em que neguei os serviços de uma bela pessoa
coisa que, tempos atrás, jamais aconteceria
penso que estou velho demais pra isso
e meu prazer de hoje já não é o mesmo de ontem

depois de algumas cervejas e do petisco rançoso
jogo minhas moedas sobre o balcão e saio
o olhar bandido do bodegueiro me acompanha até a porta
pelo lado de fora, pessoas passam, voltando ou indo para seus trabalhos
alguns cabisbaixos, outros motivados
os cabisbaixos só vêem o chão
já os motivados, carregam nos seus semblantes, além da ambição,
certo desprezo pelas pessoas errantes da noite
decerto pensam que são menos ferrados, os estúpidos!
não sabem eles o tamanho da escravidão a qual estão submetidos
“a liberdade é uma maldita ilusão nos olhos mortos da conformidade!”

caminho do fim da noite até o primeiro clarão do dia 
depois, integro um horizonte de cinzas...

Um comentário:

Maria Vitória disse...

Muito bom! Ainda bem que isso existe! Poesia nua livre da tradição clássica.