O Natal dos Índios xapecoenses e
a Sociedade de Consumo - e do Espetáculo
Vou me utilizar do termo/conceito ‘Sociedade de Consumo’ (e do
Espetáculo) para fazer referência ao momento - além de irritar (mesmo não sendo
essa a intenção) algum pseudo-filósofo intelectualóide da pós-hiper-super-mega-ultra
modernidade que se incomoda com isso, dizendo que termos/conceitos como este
(assim como ‘burguesia’, por exemplo), já não se usam mais e blá-blá-blá...
enquanto o que deveria ser realmente significativo (nas suas ‘análises’ ou
divagações, ou delírios?), passam batidos. Alguns que se dizem ‘pensadores’
ainda agem e pensam a partir do idealismo platônico (por incrível que pareça),
se portando como se estivessem para além desse mundo material-físico, como para
além da Sociedade de Consumo e do Espetáculo (viu, já comecei!). Então vamos ao
que (talvez) interessa...
Crônica daquilo que muitos não querem ver/saber
“Para Nietzsche criar, mais do que um gesto
individual, é um processo de integração e participação na vida. A vida cria em
suas constantes transformações (...)” (Viviane Mosé – filósofa, poeta e psicóloga)
Como todo o ‘bom pagão’ (e ‘consumista’ que também sou) saí de casa de
barriga e cara cheia na noite de Natal, depois da comilança, bons tragos e boas
risadas com parentes mais chegados e as crianças correndo em volta (a parte
mais divertida), para ir me empanturrar e beber novamente em outro lugar.
Depois dessa empreitada dionisíaca, o retorno pra casa. Já eram aproximadamente
4 horas da madrugada e as ruas estavam quase vazias, não fosse por alguns
grupos de pessoas (ou algo que valha), com seus automóveis tunados, tampões
erguidos e o sertanejo universitário tocando em alto volume (essa maldição!).
Nesse percurso, alguns cães cheirando a calçada e um gato vasculhando uma
lixeira, todos em busca de algum resto de comida. Passando pelo terminal
urbano, no centro da cidade, alguns muitos indígenas deitados no chão junto aos
seus balaios, em situação precária. Entre eles, crianças e velhos. Lembrei no
ato, de outro dia quando fui até a rodoviária e lá também haviam muitos
indígenas vendendo seus balaios, em situação precária também. Aquela imagem me
entristeceu ao mesmo tempo que me revoltou. Não sou dos que finge não ver, nem
daqueles que naturaliza questões socioculturais e econômicas como esta. Aquelas
pessoas, suas etnias, seus antepassados, pra quem ainda não sabe ou finge não
saber, estavam aqui nesse chão muito antes do euro-descendente judaico-cristão chegar
e trazer consigo sua cultura segmentaria, dita ‘civilizatória’. Nessa ‘civilização’
se incluía o subjulgo e exploração do nativo (índio), de forma violenta, além
da sua catequização (ou convertimento a fé e moral judaico-cristã), um pretexto
para a exploração e o domínio humano e territorial. Tudo em nome de um deus
único, supremo e autoritário (pelo menos no discurso impostor da Igreja e dos
eurocentristas colonizadores, os mesmos que hoje são ‘ícones’ de um suposto ‘progresso’,
de uma suposta ‘civilização’ bem sucedida - ou decadente?). Os mesmos que foram
homenageados tendo seus nomes vinculados a praças, loteamentos e ruas da
cidade. Enquanto isso, os primeiros habitantes desse chão, os ‘indesejáveis’
desse sistema... bem, você deve saber. Para muitos, esses habitantes não
existem. São invisíveis aos olhos de uma ordem sociocultural e econômica que
tem por objetivo maior o consumo – de produtos gerados pela ‘exploração do
trabalho’ dado pela indústria configurada nesse modo de produção capitalista
(leia-se Marx). Nisso, os ‘escravos’ ou ‘viciados’ neste ‘sistema’ produtivo,
econômico e cultural, consomem e por ele são consumidos, geralmente sem se
darem conta disso. E os indesejáveis continuam não existindo para os olhos
cegos que não veem para além dos seus próprios umbigos. Estão tão encantados
com o ‘poder ter’, que o ‘ser’ não importa. E o poder público faz vistas
grossas a isso, também desprezando a cultura ancestral do povo nativo, seus
velhos e suas crianças. E criança é criança, em qualquer parte do mundo,
independente do grupo social a qual pertença. Mas, para os olhos doentios do ‘branco
civilizado, fiel a Sociedade de Consumo’, isso não vem ao caso. Os
indesejáveis, os invisíveis, os diferentes, sobrevivem com os restos dessa
sociedade, vistos como inferiores, ainda hoje. Isso explica o ‘sucesso’ de
certas campanhas ditas ‘solidárias’ que se fazem aos montes nessas datas
oficiais. Depois... bem, depois não interessa (não é?).
“Hoje, com a imensa mudança de meios, diante de um
mundo que ao mesmo tempo desaba e floresce, resta ao homem decidir, em cada
ação, que postura tomar. Se antes consultávamos um manual do certo e do errado,
hoje devemos pensar, elaborar, decidir que caminho trilharemos, e isto exige,
não alguém passivo, que siga regras, mas alguém capaz de atitude e
transparência. A ética exige autonomia e responsabilidade. Uma atitude ética é
aquela que considera o entorno”. (Vivivane Mosé)
Muito (pouco) se debate dessa questão de forma mais ampliada e dura, ou
seja, radical – e é o que é preciso para sair dessa ‘desventura cíclica’ que
acontece quando se trata de um tema tão urgente como a ‘ética da vida’ (é pra
ontem!). Esse discursinho em torno da ‘questão indígena’ e da ‘vida alheia’,
tanto batido por aí (nenhuma vida é alheia, pois ela, a vida, é um todo, uma
interação do ‘eu’ com o ‘outro’, e de ‘nós’ com o meio) que já cansei de ouvir
pela televisão e em algum ciclo universitário já encheu o saco. E alguns professores universitários, ‘estudantes’
(?) - já que aqui também temos universidades públicas (federal e estadual), o que
pensam, dizem e fazem a respeito? Vejo muitos estudantes apenas sugando,
fazendo turismo nessas universidades, aproveitando a facilidade de não pagar
mensalidade, reproduzindo valores tão medíocres quanto as suas existências,
para depois, simplesmente aderirem de forma leviana a essa estrutura, sendo
mantenedores e/ou reformadores dela (e alguns estudantes ainda reforçam
pré-conceitos e vulgaridades por aí. Imbecis!). Pouco ou quase nada sai deste ‘ciclo’
com corpo, substância e força de transformação. Como eu queria ver os grupos de
indesejáveis reunidos em uma guerrilha, como a dos Chiapas Zapatistas no México
por exemplo, resistindo a todo esse circo. Mas a mediocridade e conivência das ‘instituições
legais e sagradas de poder concentrado e constituído’ (famílias, escolas,
universidades, igrejas, clubes e ordens sociais, empresas midiáticas, poder
público, Estado, etc...) também obedientes e complacentes ao consumismo e ao
espetáculo, são tão reducionistas e vaidosas que não se movem para além de seus
núcleos, seus interesses e vícios. Mas, contudo, não sejamos pessimistas, pois,
toda ordem acaba um dia ruindo de forma a degradar a própria cultura que a
mantém. E isso, senhores e senhoras, já está acontecendo. Talvez não percebam
(a cegueira é tanta!), mas... o Caos, neste sentido, sempre sopra a favor dos
invisíveis e indesejáveis desse mundo, e ele é maior do que tudo isso. Que isso
não sirva de conforto, mas de força motora aqueles que, assim como eu, já
cansaram de toda essa ladainha de um ‘amanhã melhor’, ‘mais justo’, assim como,
dos discursos em torno dessas ‘desigualdades’.
"No es el conocimiento lo
que nos acerca a los santos, sino el despertar de las lágrimas que duermen en
lo más profundo de nosotros mismos". (E.M. Cioran -
De lagrimas y de santos)
hgs.
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