Olho para o teto. A goteira cai lenta e gelada na minha testa. A
noite se arrasta umedecida como a lesma na parede do meu quarto. A garrafa de
rum foi morta em menos de uma hora. Toda a cerveja e todo o cigarro duraram um
pouco mais. Na tevê, o mesmo de sempre. Futebol, novela, tiros, propagandas de
automóveis com gostosas ao lado, comentários estúpidos de jornalistas medíocres
sobre as manifestações que tomam as ruas, herói político nacional em denúncias
de corrupção, herói esportista nacional tombando no ringue feito um
deslizamento de terra, etecétera. Tudo muito importante e empolgante. Tanto que
jogo a garrafa vazia de rum na porcaria da tevê. Ela silencia e incendeia.
Deixo que queime até virar pó. Enquanto isso, uma garoa fina cai lá fora. O dia
é uma projeção e eu continuo esparramado na cama. Uma barata passa sobre meus
pés. A única e boa companhia das últimas vinte horas. Ela não fala pelos
cotovelos, não reclama, não me pede cigarros nem joga sua ira sobre minha alma.
Tenho a alma leve por isso. Não me incomodo com a barata, e por mais que não
goste de insetos, tolero seus modos. Admiro a resistência dos insetos e a forma
com que se movem e como se adaptam a condições adversas. Olho para meus braços
e para a barata. Lembro-me de Kafka. Penso que se eu ficar mais algumas horas
ou dias nesse quarto, me transformo em inseto. Fecho os olhos aguardando a
metamorfose.
hgs.
* também publicado no jornal Folha do Bairro, 12/07
Nenhum comentário:
Postar um comentário