sexta-feira, 12 de julho de 2013

Eu inseto...


 Olho para o teto. A goteira cai lenta e gelada na minha testa. A noite se arrasta umedecida como a lesma na parede do meu quarto. A garrafa de rum foi morta em menos de uma hora. Toda a cerveja e todo o cigarro duraram um pouco mais. Na tevê, o mesmo de sempre. Futebol, novela, tiros, propagandas de automóveis com gostosas ao lado, comentários estúpidos de jornalistas medíocres sobre as manifestações que tomam as ruas, herói político nacional em denúncias de corrupção, herói esportista nacional tombando no ringue feito um deslizamento de terra, etecétera. Tudo muito importante e empolgante. Tanto que jogo a garrafa vazia de rum na porcaria da tevê. Ela silencia e incendeia. Deixo que queime até virar pó. Enquanto isso, uma garoa fina cai lá fora. O dia é uma projeção e eu continuo esparramado na cama. Uma barata passa sobre meus pés. A única e boa companhia das últimas vinte horas. Ela não fala pelos cotovelos, não reclama, não me pede cigarros nem joga sua ira sobre minha alma. Tenho a alma leve por isso. Não me incomodo com a barata, e por mais que não goste de insetos, tolero seus modos. Admiro a resistência dos insetos e a forma com que se movem e como se adaptam a condições adversas. Olho para meus braços e para a barata. Lembro-me de Kafka. Penso que se eu ficar mais algumas horas ou dias nesse quarto, me transformo em inseto. Fecho os olhos aguardando a metamorfose.

hgs. 


* também publicado no jornal Folha do Bairro, 12/07


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