Farrapo...
Estou
em farrapos. Mais
um balaço e morro. O último atravessou meu ombro e foi dar no meu cavado que
tombou feito uma araucária num ato de desmatamento. É, assim é a guerra! Se é
que dá pra chamar aquilo de guerra. Assim é a batalha e a lei do mais forte.
Assim foi minha vida. Meu cavalo tive que sacrificar. Meu único amigo,
companheiro de andanças. Um balaço no peito e o bicho ali agonizando. Eu,
impotente feito uma novilha que vai pra carneação. Não consigo bater no peito e
dizer, como tantos fazem, com orgulho: ‘Sou gaúcho!’. Eles nunca estiveram numa
batalha. Aí fica fácil discursar, bater no peito, gritar grosso. O exército
farroupilha, depois de feito o acordo com os imperiais, me deixou aqui, feito
um trapo. E quem é o farrapo nessa história? Eu, um negro, sem chão pra pisar,
sem terra pra plantar - e agora sem cavalo pra montar. Eu, um índio. Eu, um
caboclo - sem um mate pra cevar. Me deixaram sem espaço. Era só uma promessa.
Fui lanceiro pro estancieiro. Fui cortador de erva, secador de charque,
domador, fui escravo e fui obreiro. Me criei na lida e o que aprendi do mundo,
foi o mundo que ensinou. No lombo do meu cavalo atravessei horizontes. O
capataz obediente sempre em volta, o patrão, sua terra, imensa, infinita.
Latifúndio, me disseram um dia. Um pedaço me prometeram se eu fosse pra guerra.
Uma guerra pela causa, diziam. República! Libertação! Palavras que nunca me
fizeram sentido. E deu no que deu. Eu aqui, sem rumo. Até meu cusco serviu de
sebo pro laço do patrão. E eu não tive escolha. Me tornei caudilho. Fui
mercenário. Saqueei, matei, fiz miséria dessa gente. Sempre na promessa de
tempos melhores que ainda não chegaram – e tenho medo, nunca chegarão! Sou do
pampa. Sou filho da terra. Meu rancho hoje é isso. Essa tapera velha que tu ta
vendo! Chão batido, pés descalço. Nem minha bota de garrão sobrou. As três
marias perdi na última batalha onde também deixei metade do meu braço. O fígado
ficou na venda do Herculano. O coração com Anita, a filha do patrão. Nada mais
me resta. O general pegou seus homens e foi-se embora. A promessa de voltar
ficou no esquecimento - dele. Assim como eu. Lutei e tive meu nome apagado da
história. Agora, ouço uma notícia. Querem outra vez separar esse latifúndio do
resto do país. Não, eu não lutarei por isso. Nunca! Quero minhas últimas forças
para dizer ‘Não!’. Já fui tapeado uma vez, me basta! Um monte de falador com
panca de macho roncando mais grosso que o fole da oito-baixo: ‘Sou gaúcho!’. Um
desfile de vaidades dentro de bombachas em alguma comemoração dita farroupilha
por aí. Não tenho mais lenço. Não tenho bandeira nem uma lança pra peleia. Só o
esquecimento e a ignorância dos que botam panca. O tempo passou e minha herança
é essa. Mas eu ainda tenho o sonho, sim. E ele tem nome: Reforma Agrária!
Nenhum comentário:
Postar um comentário