segunda-feira, 17 de setembro de 2012

Crônicas de farrapos...

 
Farrapo...
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 


 
 
Estou em farrapos. Mais um balaço e morro. O último atravessou meu ombro e foi dar no meu cavado que tombou feito uma araucária num ato de desmatamento. É, assim é a guerra! Se é que dá pra chamar aquilo de guerra. Assim é a batalha e a lei do mais forte. Assim foi minha vida. Meu cavalo tive que sacrificar. Meu único amigo, companheiro de andanças. Um balaço no peito e o bicho ali agonizando. Eu, impotente feito uma novilha que vai pra carneação. Não consigo bater no peito e dizer, como tantos fazem, com orgulho: ‘Sou gaúcho!’. Eles nunca estiveram numa batalha. Aí fica fácil discursar, bater no peito, gritar grosso. O exército farroupilha, depois de feito o acordo com os imperiais, me deixou aqui, feito um trapo. E quem é o farrapo nessa história? Eu, um negro, sem chão pra pisar, sem terra pra plantar - e agora sem cavalo pra montar. Eu, um índio. Eu, um caboclo - sem um mate pra cevar. Me deixaram sem espaço. Era só uma promessa. Fui lanceiro pro estancieiro. Fui cortador de erva, secador de charque, domador, fui escravo e fui obreiro. Me criei na lida e o que aprendi do mundo, foi o mundo que ensinou. No lombo do meu cavalo atravessei horizontes. O capataz obediente sempre em volta, o patrão, sua terra, imensa, infinita. Latifúndio, me disseram um dia. Um pedaço me prometeram se eu fosse pra guerra. Uma guerra pela causa, diziam. República! Libertação! Palavras que nunca me fizeram sentido. E deu no que deu. Eu aqui, sem rumo. Até meu cusco serviu de sebo pro laço do patrão. E eu não tive escolha. Me tornei caudilho. Fui mercenário. Saqueei, matei, fiz miséria dessa gente. Sempre na promessa de tempos melhores que ainda não chegaram – e tenho medo, nunca chegarão! Sou do pampa. Sou filho da terra. Meu rancho hoje é isso. Essa tapera velha que tu ta vendo! Chão batido, pés descalço. Nem minha bota de garrão sobrou. As três marias perdi na última batalha onde também deixei metade do meu braço. O fígado ficou na venda do Herculano. O coração com Anita, a filha do patrão. Nada mais me resta. O general pegou seus homens e foi-se embora. A promessa de voltar ficou no esquecimento - dele. Assim como eu. Lutei e tive meu nome apagado da história. Agora, ouço uma notícia. Querem outra vez separar esse latifúndio do resto do país. Não, eu não lutarei por isso. Nunca! Quero minhas últimas forças para dizer ‘Não!’. Já fui tapeado uma vez, me basta! Um monte de falador com panca de macho roncando mais grosso que o fole da oito-baixo: ‘Sou gaúcho!’. Um desfile de vaidades dentro de bombachas em alguma comemoração dita farroupilha por aí. Não tenho mais lenço. Não tenho bandeira nem uma lança pra peleia. Só o esquecimento e a ignorância dos que botam panca. O tempo passou e minha herança é essa. Mas eu ainda tenho o sonho, sim. E ele tem nome: Reforma Agrária!
 
 
 
 
 
 

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