Chapecó é uma cidade que tem em torno de 190mil habitantes, um comércio
aquecido, padrão de vida (de um modo mais geral) bom e onde a especulação
imobiliária se expandiu muito. Além deste contexto econômico e das mazelas
sociais (o que não vou nem trazer a tona aqui, pois não é o momento), temos
certa ‘tradição’ no rock autoral e independente por aqui. O cantor Tyto Livi e
a banda Grupo Nozes, ambos residentes e produtores nos anos 70 em Chapecó,
foram os primeiros artistas a gravar discos (compactos) autorais de forma
independente da região e, pelo que sei, do Sul do país. O disco ‘Memórias de um
certo louco’ do Tyto, que inaugura essa história, data de 1977, enquanto o do
Nozes, 1978. De lá pra cá tivemos muitas bandas e produções próprias aqui na
cidade e região. E os espaços foram se constituindo e se conquistando aos
poucos. Passado o tempo, ainda hoje Chapecó abriga muitas bandas autorais e/ou
compositores, muitos deles talentosos, diga-se de passagem. São daqui bandas
como Repolho e Os Variantes, só para citar duas das mais significativas, que
rodam mais fora da cidade e tem suas músicas mais conhecidas no cenário
autoral/independente. Hoje vivemos um bom momento do rock chapecoense, talvez, em termos de ‘qualidade’ (mesmo
isso sendo bem subjetivo), um dos melhores da nossa história. São algumas
bandas muito boas, criando, produzindo e compondo bem, tocando bem, tendo boas
presenças e/ou posturas de palco, criando voz própria. Porém os espaços para
essas bandas é bem reduzido se compararmos a algum tempo atrás. Se as bandas
aumentaram e melhoraram seu material artístico/musical, os espaços também
deveriam ter se ampliado, dentro de certa lógica. Mas, acontece o oposto. Bandas
cover enchem os espaços, por dois motivos, penso eu. Um: as casas de shows e/ou bares abrem mais suas portas para isso,
consciente ou inconscientemente, apoiando e alimentando a prática do cover; Dois: parte significativa do ‘público’ entusiasta
do rock, gosta dos ditos ‘clássicos’, dos já consagrados, e não podendo ver
seus ídolos e/ou ícones ao vivo, partem para as ‘imitações’, pois, cá entre
nós, e sem meias palavras ou disfarces, cover é imitar – o que é diferente de
fazer versões e/ou releituras de outros. Sei que isso não é algo ‘racional’,
pois gosto (esse tipo de gosto) atinge a parte afetiva, emocional. Não há nada
demais em curtir a música que gosta, é claro, porém, o que é difícil compreender,
é que, como alguns sempre cavam o mesmo buraco e não se cansam disso? Sei,
alguns vão me dizer: ‘música boa é eterna!’, e eu sei disso e concordo. Mas,
abrir um pouco a cabeça, a alma, os ouvidos para ‘o diferente’ também pode
gerar prazer e, certamente, ampliar horizontes. Muitos dos ditos ‘clássicos’
viram uma espécie de entidade ou santidade, em que seus ‘adoradores’ os
glorificam sem cessar como num altar, onde o ícone é intocável – e ai daquele
que criticar o ‘deus’! Isso aconteceu muito na década de 70 e 80 com o culto ao
‘rock star’, principalmente,
impulsionados pela beatlemania e o
que veio depois dela. Mas essa também é outra história para um outro momento. Hoje
ainda esse culto, ou essa forma de se conceber e pensar o ‘artista’, o roqueiro
ou as bandas preferidas, é corrente. Muitos fãs e/ou admiradores veem seus
gostos dessa forma, mas algumas bandas ainda agem assim. São interesses,
intenções, pretensões e motivos variados. Algumas bandas absorveram ‘estereótipos’
e não largaram mais deles, e isso é uma característica, principalmente de
bandas cover – se bem que, conheço muitas ‘autorais’ que assim também se portam
e agem. Aquela velha ‘estória’ do rock
star e seus motivos estereotipados como ele: ‘cerveja, fama, mulher gostosa
(ou não) e roquenrou’. Assim se constituiu um dos maiores produtos da indústria
cultural e do entretenimento da história (senão o maior). Depois da Segunda
Grande Guerra (entre 1945 a 1950), um novo conceito de jovem surge. O teenager passa a ser o foco das atenções
da indústria da moda, da música, do consumo. O jovem que antes parecia
deslocado do mundo, passa a ser um potencial consumidor, o maior de todos os
tempos. O mercado de ‘novidades’ e efemeridades volta-se ao jovem, suas buscas
e anseios. E isso se estabelece e se reproduz até hoje. Dentro de todo esse
contexto encontramos o rock, suas bandas, seus modos, suas políticas. Sim, políticas,
pois TODOS tem posições e/ou posturas, mesmo os que agem de forma a se ‘neutralizar’
nisso (dentro de um discurso dado), pois, “não tomar posição, é uma tomada de
posição”. Nisso, vemos hoje, não uma disputa declarada, pois não há critérios e
frentes democráticas para isso (é muito desigual a situação e a realidade), mas
um jogo de forças, mesmo que desiguais, onde, de um lado, com as maiores
oportunidades e espaços garantidos, estão os covers, com suas reproduções, seus
estereótipos, e algumas bandas que, mesmo não sendo covers, agem como tal e
somam nesse jogo ao lado dos ‘reprodutores’ (vamos assim chamar, pois, além da
música, estão as posições, as ideias, os passos), do outro lado, os compositores, as bandas autorais, os ‘criadores’
ou ‘produtores’, que contam com seu talento, alguns apoios e espaços mais ‘democráticos’
e de bom senso (e menos capitalistas, diga-se de passagem), e parte inspiradora
e inteligente do grande público, que ouve e pensa (porque não?) para além do
que já é consagrado, para além do que é dado e reproduzido em massa. Instrumentos
da indústria da cultura, como os meios de comunicação (informação) de massa, já
cumprem com esse papel, que, muito além de ‘democrático’, é ideológico (leia-se
melhor essa discussão com a Escola de Frankfurt). Sei que existem necessidades
e motivos, mas também sei que existem interesses e certo conformismo ou comodidade,
até na valorização dos agentes culturais e artísticos e na audição, por parte
significativa daquilo que se chama ‘público’. Também sei que as casas de shows,
eventos e bares tem que sobreviver – já cansei de ouvir isso, mas, existem
outras questões que vão além dessa mera ‘sobrevivência’, pois, além de lucro,
comércio e sustentação, estamos falando em ‘arte’, cultura, música, e reduzir
isso a uma jogatina, onde o maior valor é o ganho, o status e a reprodução, é
no mínimo alimentar a mediocridade dos feitos humanos. Da minha parte, estou ao
lado da amplitude desses conceitos e não do reducionismo.
Cover não é Versão - cover é imitação, e versão é releitura...
Particularmente,
não gosto que digam que, enquanto compositor e guitarrista de uma banda de
rock, fazemos cover. Aliás, se realmente fiz ou tentei fazer cover nas bandas
que já toquei, foram raras as vezes que isso aconteceu. No começo não tinha
condições, pois mal sabia tocar e meu ouvido não era bom (não que hoje saiba ou
seja, mas, aprendi um pouco). Talvez por não ter técnica suficiente para saber
imitar, comecei já com as músicas próprias, tentando apenas alguma imitação,
chegar perto de alguma banda que gostava na época, mais isso é muito comum,
ainda mais no começo, diga-se de passagem. Nisso, tive ‘escola’ no punk que me
forneceu, além da possibilidade, do risco, a energia, o vigor de fazer sem medo.
Aprendi um pouco de partitura e tablatura, mas não tive paciência (nem tempo)
para investir nisso, e acabei usando o ouvido e a intuição, além do
conhecimento (muita audição, busca, pesquisas e leituras sobre música e afins).
Hoje posso dizer que ainda não fazemos cover. Epopeia faz algumas ‘releituras’
e/ou ‘versões’, o que é diferente. Não nos despenhamos a tirar músicas iguais
ou muito semelhantes as ‘originais’. Obedecemos nossa ‘musicalidade’ e
sonoridade, nossa voz, nossos modos e maneiras de fazer. Nada mais divertido e de
certa ‘autenticidade’, poder criar em cima do que já existe, ou seja, fazer
daquilo, outro - mesmo que fique um tanto parecido, mas não muito. Para isso é
preciso deixar um pouco de lado aquela paixão, aquela sensação de ‘purismo’ e
compromisso com a dita ‘originalidade’. Mantendo certa ‘essência’, o âmago da
obra, o mais é roupagem, e a roupagem é de cada um. Sei que isso demanda de
certa experiência, certo tempo, certo acendimento, certo talento e disposição,
mas chega um tempo que o ‘produto artístico’, a obra, neste caso, a música,
passa a ser o mais importante, realmente, e, a partir disso, falar por si só. Mas
nem sempre foi ou é assim. As coisas não caem do céu ou vem de um dom divino,
de cima para baixo. É preciso, além de certo talento, alguma afinidade,
prática, suor, trato, inteligência, disposição e necessidade. Chega um ponto
que a música, a composição, além da cabeça, dos sentimentos, dos instrumentos e
amplificadores ou caixas de som, sai do corpo, do estômago, das vísceras. A música,
assim como qualquer outra arte, expressiva, comunicativa e forte, adquire
linguagem e voz própria. Sei que isso não é tão comum, tão corrente, mas
acontece. A partir daí, a música fala para das suas ‘necessidades’ ao músico
e/ou instrumentista. Timbres, sobras de som ou resonâncias, ruídos e arranjos
já não são mais meros detalhes ou complementos da música, são a própria música,
ou seja, fazem parte do corpo e ambiente sonoro dela, ou por onde ela vai se
propagar.
E o que isso tem haver com o cover?
Muito, eu diria. O cover,
se comparado a isso, é engessado. Cover é imitação, ou, no melhor dos casos,
tentar chegar perto do ‘original’. Não vejo nada de autêntico num cover. Mas isso
não significa também que eu seja contra. Apenas acho, a maioria dos que já vi/ouvi,
chatos. Tocar cover demanda de uma atitude bem radical, porém, para quem ouve
(se munido de condições, é claro!), também de uma audição bem radical. Cover,
ou é bem tocado, que no exato momento da execução te remete a pensar e sentir a
banda e música ‘originais’ - e se tu gosta da música vai curtir (e porque
não?), ou é uma bosta! Mas esse também é o ‘perigo’ da versão ou releitura. Alguns
tentam, mas o tróço fica forçado e sem graça, pois, neste caso ‘é bingo!’, não
condiz com a sonoridade, musicalidade e voz da banda. Então, para fazer versões
ou releituras, é necessário um ‘desprendimento’ das formalidades, assim como
daquilo que se tem como ‘original’ – “por não ser original, não significa que
não possa ser autêntico” – e isso pode ser tão difícil quanto um cover bem
feito. Acontece que muitas bandas navegam a meio mastro, não fazendo um nem
outro, ou seja, não fazem um bom cover nem uma boa versão, só fazem porque a
música é conhecida e cai no gosto dito ‘popular’ (ou ‘popularizado?’ – outra
discussão além).
Minha intenção ao
pensar e por no papel (ou no com-puta-dor) essas questões, não é alimentar uma
disputa, criar uma guerra ou algo assim, simplesmente, sinto uma necessidade em
discussões como esta que pouco rodam no meio musical e/ou artístico, pelo menos
aqui na cidade. Por isso existem equívocos, disputas bestas, brigas e afins em
torno disso, pois não se discute e se aprimoram os conhecimentos e argumentos a
respeito daquilo que se vive. Muitos ‘roqueiros’ são bons em subir no palco, mal apena tocar (como dizem os mais
velhos), bater cabeça ou gritar: ‘róquemrooooouuu!!’, além de galantear meninas
com isso e andar por aí com panca de pop star.
Além disso, nada. Atitudes como essa somam na reprodução de valores
individualistas e individualizantes que a ideologia de mercado e política que
há por trás da indústria da cultural promovem. E a história do rock, tanto dos
consagrados quanto dos independentes (que sonham com a consagração), é recheada
disso. Para encerrar, nada contra (mas também a favor – pois não é essa a
questão e não é tão simples assim), o cover, o público de cover e os eventos
que se beneficiam dele, simplesmente falo pelo que está além disso, dessa ‘estrutura’,
dessa formatação. Sim, Metallica, Led Zeppelin, Doors, Guns, entre outros, são
boas bandas, e existem boas bandas covers dessas, porém, o mundo continua e
rock não morreu, apesar de muitos engessa-lo ou sepultá-lo em décadas passadas.
Boas, talentosas e até geniais bandas e seus talentosos compositores estão
acontecendo, significativamente, e no presente. Bandas como as do Jack White
(The Raconteurs e Dead Weather), The Mars Volta, Radiohead, Arcaide Fire,
Placebo, Wolfmother, etc., (entre as ‘gringas’); Plástico Lunar, Cidadão
Instigado, Rafael Castro e os Monumentais, Confraria da Costa, Sopro Difuso, Ruido/mm,
Rinoceronte, Skrotes, Mordida, etc., (entre as mais contemporâneas); Patrulha
do Espaço, Os Mutantes, etc., (entre as mais ‘clássicas’ e ainda atuantes); e
não vamos longe: as já citadas Repolho e Variantes; mais: John Filme, Duranggos,
Hairy Stone, Marujo Cogumelo, (não é preciso citar Epopeia, não é? hehe!), etc.,
(entre as locais/regionais)...
Enfim, uma gama
muito grande e boa de novas e velhas (mas ainda atuantes) bandas e suas belas
composições e obras para serem mais apreciadas, percebidas, descobertas,
ouvidas, dignificadas e valorizadas, basta olhar para além do que já é visto, e
ouvir, como ouvidos de quem sente e pensa por si próprio.
* escrito em 15/01/2013 (dia do Compositor)
Herman G. Silvani (escritor/cronista, professor de
linguagens & humanas e sociais, compositor & guitarrista da banda
Epopeia)
Um comentário:
Gostei do texto, achei bem embasado e argumentado. Fiquei 6 anos tocando em uma banda cover, que por um definição do texto, seria algo a meio mastro. Não era nem versão, nem cover nota por nota. Depois dessa experiência, abracei totalmente o som autoral e assim tenho feito desde 2008. Os frutos começam a sair, alguns deles já por aí. E além disso, hoje sou um ferrenho defensor do som autoral, especialmente quando vejo um músico bom por cima do palco gastando seu talento em repetir (ou tentar repetir) e não em criar. Isto é um círculo vicioso de preguiça mental. Mas me apoiando na tese de que a história é cíclica, em meados dos anos 60 tinhamos um panorama bem parecido com o atual - as tais bandas de baile, ou os puristas do blues na Inglaterra, ou as bandas de garagem dos EUA eram bandas eminentemente covers. Mas a maré virou e o fim dos anos 60 e começo dos anos 70 foi uma explosão de som autoral, que causou uma reviravolta inclusive na indústria musical, permitindo por exemplo que discos da densidade de um "Thick as a Brick" ou "Dark Side of the Moon" fossem sucessos estrondosos. Fica a esperança.
Abraço,
Ronaldo
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