terça-feira, 26 de junho de 2012

Sobre heranças, aparelhos repressivos & reprodução


A manutenção da ordem em ‘Vigiar e Punir’ – pela reprodução e seus agentes

Anos atrás li o livro do filósofo e/ou historiador, que tem dedos na sociologia, antropologia e psicanálise, Michel Foucault, e que leva o título de ‘Vigiar e Punir’. Nele, de um modo geral, Foucault faz um estudo das formas de vigia e punição dos ditos ‘criminosos’ pelas instituições. Aqueles que, por algum motivo, são considerados e tratados como ‘criminosos’, passando assim, viverem submetidos pela força da lei. Um livro que dialoga com um ‘clássico’ da literatura mundial, outra obra que li anos atrás - trata-se de ‘1984’ de Georg Orwell, que virou um bom filme nas mãos de Michael Radford (também diretor de ‘O carteiro e o poeta’). Em ‘Vigiar e Punir’, Foucault trata de um modelo disciplinar de ordem e conduta que veio sendo desenvolvido ao longo da história humana, um “modelo disciplina”, no qual, é representado pela figura arquitetural da disciplina por excelência: o Panóptico. O Panóptico é uma “máquina” criada para manter em vigilância as pessoas que por algum motivo infringiram leis ou possuem alguma patologia. Escolas, prisões e hospitais, são exemplos de instituições que se utilizam da idéia do Panóptico, nas suas arquiteturas e modos de funcionamento. Nesses modelos cada vigiado ou punido tem seu lugar, sua jaula, e deve estar sempre visível, policiado por aqueles que são os olhos do ‘Grande Irmão’ (Big Brother - leia-se ‘1984’). Observando certas publicações na rede social mais famosa do mundo, se percebe a reprodução dessa “máquina”, dessa forma de coerção e tentativa de imposição de força e/ou poder, e de intimidação. E essa forma de pensar, atuar, se posicionar no mundo, também está cravada nas concepções e heranças intelectuais, de valores e morais, dadas pela crença, pela submissão e/ou concordância das ordens sociais, através das instituições e da família e seus agentes. Essa forma de violência, que não é só física, é também moral, torna-se prato cheio para outra reprodução, a do ‘espetáculo’ (leia-se ‘Sociedade do Espetáculo de Guy Debord), alimento diário dessa mesma ordem socio-cultural. Nesse caso, a violência é um ‘mercado’, servindo de ‘espetáculo’ sensacionalista oferecido pelos meios de comunicação de massa, distribuída como ‘pão e circo’ para a população que acaba gostando da ‘farra’, onde a ‘criminalidade’ alimenta todo um sistema burocrata que anda em círculos (judiciário, executivo, legislativo) com burocracias e formas legais de violência. É a violência dizendo combater a ela própria, e este combate sendo seu próprio alimento – e ela crescendo e engordando.

















Tendo certa sensibilidade para perceber isso, fica claro o quanto essa ‘ótica’ - a do ‘bem’ contra o ‘mal’ (ou do ‘certo’ contra o ‘errado’), a do ‘normal’ contra o ‘anormal’, do ‘saudável’ contra o ‘doente’, do ‘sagrado’ contra o ‘profano’, vigora em nossa sociedade. Uma via de duas mãos (ou de mão única). Pior é que a maioria dos que reproduzem essa ‘visão’, utilizam-se de um discurso nada fundamentado, apenas, um discurso, muitas vezes, de caráter fascista, pró o ‘eixo do bem’ contra o ‘eixo do mal’. Um ‘neofascismo’ nasce desse tipo de pensamento, que não é bem um pensamento, mas uma reprodução de valores, sentimentos e alguma mágoa ou frustração histórica, pessoal e de vida. A família é a instituição que mais vigia e controla o ser humano, mesmo por estar mais próxima dele e guiar seus primeiros passos, interferir e influenciar nas suas primeiras vontades e crenças. Desde o momento em que a criança nasce ela está sendo vigiada pelos pais, e ao crescer e se tornar jovem e depois adulto, as cobranças continuam, agora também, por parte da própria moral inculcada ‘a’ e ‘em’ si - ao ‘sujeito’.

















Muitas pessoas que se expõem nas redes sociais, muitas delas vindas, geralmente, de uma ‘tradição’ familiar religiosa, militar, conservadora e/ou moralista, fazem uso, mesmo sem saber, dessa “máquina”. Isso explica um pouco a predominância da reprodução (‘normalidade-legitimada’) sobre a criação (‘anomalia-criminosa’). Tenho parentes e conhecidos próximos (mas não tão próximos) que trabalham na ‘área repressiva’ do Estado - de agente carcerário à policial federal de alto escalão - e nem todos absorvem e comungam desses pensamentos ou reproduzem essa prática (a de vigia, repressão e punição), só o fazem porque faz parte das suas ‘obrigações’ (mas também, isso pode ser pensado como uma escolha, não somente obrigação). Porém, vejo pessoas que fazem questão de evidenciar seu cargo, sua função como sendo algo ‘superior’ ou ‘autorizado’ pela lei, utilizando isso como uma ‘vantagem’ dentro da estrutura hierárquica social. Aí vem o exibicionismo público e a tentativa de intimidação contra os que pensam e atuam para além dessa reprodução.  Enquanto isso, pensadores como Jiddu Krishnamurti, Antonin Artaud, Friedrich Nietzsche e o próprio Foucault, assim como outras pessoas no seu cotidiano, em suas análises, seus estudos, através das suas problematizações, linguagens e práticas diárias, se armam contra essa via determinista-reducionista, onde o ‘obediente’ se sobressai ao ‘rebelde’ (a luta do ‘bem’ contra o ‘mal’ – sendo o ‘bem’, ideologicamente o exemplo moral a ser seguido, e o ‘mal’, o que contraria, subverte, contesta, desconstrói).



Exemplo de reprodução de caráter neofascista presente nas redes sociais:


















Percebam o uso dos termos e pré-conceitos na forma escrita: onde a afirmação ‘não me misturo’ com os termos ‘viciado’* e ‘vagabundo’*, são formas descontextualizadas de constatação (ou carecem de fundamentação para saírem do âmbito do discurso ideológico e passarem para o da problematização dialógica), somadas a interrogativa abaixo, direcionada ao receptor, e por fim, a imagem ‘armada’ que se reporta a um personagem danoso e repressor de um filme (leia-se ‘Tropa de Elite), como se ele estivesse ‘correto’, do lado do ‘bem’, contra o ‘mal’, conclamando aos demais ‘corretos’ a compartilhar a postagem.

* Viciado: diz-se daquele que tem um vício; dependente químico (no sentido da postagem); no caso, no Brasil, concebido e/ou tratado como doente (em estado ‘anormal’), por tanto, passível de tratamento médico e que não responde totalmente aos seus atos;
* Vagabundo: do Latim VAGABUNDUS, “pessoa que anda sem destino”, de VAGARE, “errar, andar ao léu”, mais o sufixo -BUNDUS, “propenso a, cheio de”. Também, ‘Vaga-mundo’ (aquele que vagueia pelo mundo; livre).



























Da minha parte, como professor de humanas e sociais e da área das linguagens, como produtor artístico-cultural e comunicador, trabalho a ruptura desse ‘dualismo’ em muitos dos meus textos que publico, minhas composições musicais e produções, e em sala de aula com meus alunos, através da ‘desconstrução’ (des+construir: desfazer a construção de; em última instância, destruir). Utilizo-me de pensamentos e conceitos, assim como frases, textos e imagens como instrumentos desta ‘ação’. Tem uma frase que volta e meia vem me bater na cachola, desde o tempo em que produzia fanzines, tocava em bandas punk e atuava junto a movimentos anarquistas, que diz: “A sociedade cria suas vítimas para depois penalizá-las”. Artaud, por sua vez, vem nos dizer: “A sociedade não tolera a loucura, pois ela enuncia verdades insuportáveis”. Volta e meia, pensando em concepções como essas, escrevo em letras grandes no quadro, uma frase simples, porém contemplativa, que formulei neste sentido, e para uma compreensão mais, digamos, ‘didática’, ‘dialógica’ e ‘dialética’, problematizando a questão com os alunos: “Ninguém é mocinho ou bandido o tempo todo”. Considerando sempre que nossa ordem social foi cunhada acima de estruturas morais religiosas (sob tudo judaico-cristãs), pensamentos idealistas (platonismo), racionalismo científico-tecnicista (cartesianismo), e conduta militar. A partir de obras artísticas e filosóficas, de criadores-pensadores como Nietzsche, por exemplo, entre outros (onde muito do seu pensamento vai dar suporte para essa ‘desconstrução’, partindo do seu ‘para além do bem e do mal’), se criam possibilidades que contrariam a forma determinista do ‘pensar’ e ‘agir’, presentes na reprodução e estagnação de certos valores e ‘verdades’.

“Não é sinal de saúde estar bem adaptado a uma sociedade doente” (Krishnamurti)


hgs.


Um comentário:

Gabriela Machado disse...

Alguns "cães de guarda", no pretexto do trabalho honesto e necessário, servem aos senhores na manutenção do estabelecido e fazem da sua "autorização" um instrumento de poder e ego diante dos outros, assim como, se utilizam disso para terem certos acessos e vantagens. São submetidos cordeirinhos que desfilam falsas vitórias e poderes que não são seus, mas daqueles que os submetem. São dignos de repugnação ou pena. Belas análises Sr. pistoleiro!