Podem existir quatro rostos (mais identificáveis) por detrás
de uma mesma máscara. O primeiro, de olhar utópico, astuto, poético, amplo,
politizado, crítico, libertário, posicionado, com vistas para transformações. O
segundo, de olhar privado, interesseiro, dogmático, doutrinador, reacionário,
oportunista, ludibriador, usurpador, corruptor. O terceiro, de olhar medíocre,
mesquinho, estagnado, formal, burocrata, despolitizado, cego. O quarto e último, de olhar distante, alheio,
indiferente. Ambos podem vestir ou vestem máscaras. E as máscaras se apresentam
de várias formas. Algumas, inclusive, tem o formado do próprio rosto. Mas a
máscara de que venho falar é uma que está muito em evidência atualmente,
principalmente com as ondas de manifestações que sacodem o país. Trata-se da
máscara de um personagem de um HQ de Alan Moore chamado “V de Vingança”, onde o
personagem mascarado ficou popularmente conhecido como “V”, e o quadrinho
acabou virando adaptação num filme de sucesso. Um grupo (?) que se intitula
Anonymous tomou essa máscara como símbolo de seus recados e ações mundo afora.
Porém, outros grupos (ou pessoas sem grupo algum) se apropriaram da mesma
imagem, usando-a para variados fins e práticas. No entanto, no início dos anos de
1980, antes mesmo de toda essa movimentação de hakers e ativistas midiáticos, um
teórico de pseudônimo Hakim Bey já havia escrito sobre a força e o poder
informativo e organizacional da rede (ou seja, da internet, web e redes
sociais, antes mesmo delas serem o que são hoje), dando deixas de seu uso em
levantes e práticas afins, desconstrutoras de ordens reacionárias e
deterministas.
Estamos no meio de um turbilhão de informações e forças
opostas que em alguns aspectos ou momentos se atraem, formando um tornado onde
tudo e nada se misturam. Aí surgem ataques, defesas, posições e/ou a falta
delas sobre os mais variados aspectos, todos lutando por espaços onde possam
por em prática suas formas de pensar – o que, de certo modo, Karl Marx chamou
de relações de poder. Os conflitos, as contradições e as dialéticas cotidianas,
transformadas em informação e comunicadas, alimentam a rede, e as ruas acabaram
nos últimos anos, sendo palco da manifestação dos anseios humanos, sejam eles
individuais ou grupais, com isso. E entre posições e imposições, o palco das
manifestações acaba também sendo palco do espetáculo midiático e das confusões
e convulsões da rua. Mas isso não é novidade alguma. Temos vários episódios
históricos que assim se sucederam.
Os Zapatistas, sob a inspiração da figura ‘sem rosto’ do subcomandante
Marcos, também tem seus rostos cobertos, onde, quando do incrível levante de
1994, quando questionados sobre isso, deram a resposta em coro com a frase:
“Somos todos Zapata!”. Muitos anos antes do Zapatismo contemporâneo, o próprio
Emiliano Zapata, confundia seus perseguidores reacionários trocando de papéis
com seu irmão gêmeo. Assim podia, além de confundir seus inimigos, atuar em
duas frentes ao mesmo tempo.
Símbolos são utilizados e feitos território ao longo da
história. Peguemos como exemplo um dos símbolos da esquerda latino americana, a
imagem de Chê Guevara. Imagem essa que foi apropriada ideologicamente para o
‘espetáculo’, por altas marcas e grifes do capitalismo. Algo semelhante
acontece hoje com a máscara do ‘V’, só que, ao invés da bandeira de Guevara,
temos a máscara, e ambos estão expostos nas vitrines do ‘capitalismo camaleão’,
a venda. Esse sistema tem tanto poder e é tão dinâmico que se mescla, se funde,
se amplia, se apropria e transforma símbolos, ideias e práticas, utilizando-se
deles para sua própria manutenção. Como uma grande mãe que abraça todos os
filhos do mundo (desde que esses não pertençam a ‘categoria’ dos marginais, dos
indesejáveis: povos indígenas e caboclos - entre outros que ‘não consomem’ a
maneira dos demais – os demais que também podem ser as chamadas ‘minorias’, mas
que se enquadram no consumismo e espetáculo que o sistema dispõe). Indígenas,
caboclos, afro-pagãos, malditos e marginais de toda a estirpe estão fora dessa
‘lógica consumista’ do capital territorializante e permissivo. Ser território,
localização, é ser prato cheio para esse sistema, pois ele, sendo camaleão,
quando não consegue adequar os diferentes e ‘inquietos’ a si, acaba se
adequando a eles.
Julian Assange (mentor e principal nome do Wikileaks), hoje,
talvez, o grande nome da informação livre mundial, pagou preço alto por
resistir de ‘rosto limpo’ aos trâmites da jogatina midiática (e penso que
deveria ter mais apoio dos ditos lutadores por um mundo livre). Hoje, Assange vive
na dependência de apoios e correndo riscos, tendo que se privar de muita coisa
para prosseguir na sua árdua forma e escolha de resistência. Talvez, se ele não
tivesse rosto, a exemplo do Coringa (personagem de HQ do Batman: o cavaleiro
das trevas, que também virou filme), pudesse atuar de outra forma e livre do policiamento
dos ‘sistemas controladores’ mundiais. O Coringa, na sua simbologia, é um
‘agente do caos’, a carta do baralho que parece contraditória, mas que no
fundo, contradiz, assim como um dos grandes pensadores modernos (que pensa para
além da modernidade), F. W. Nietzsche se
auto percebe, sendo ele próprio, autor e ‘personagem’ na sua obra filosófica:
“Não sou contraditório, sou contraditor”. Hakim Bey, também vai além da
identificação, do território, da localização, assim como o Coringa e o grande
‘artista social’ contemporâneo, Banksy, que desconstrói paisagens com sua arte
urbana, fazendo com que o olhar do transeunte sobre o sistema, a cidade e sua
vida nela, vá além da estreiteza de uma visão acostumada e convencionada,
obediente as velhas formas e modos de se perceber e viver em sociedade.
Acontece que, assim como o Estado capitalista dito
democrático (caracterizado pelo iluminismo de cunho
maçônico-protestante-liberal-burguês, intensificado pela Revolução Francesa e
depois reformado pela social democracia) se apropria do discurso (e em certa
medida, até de algumas práticas) da dita ‘esquerda socialista’, os símbolos de
resistência também são vulneráveis a essa apropriação, e muitos deles passam (a
exemplo do ‘discurso revolucionário’ de esquerda), a fazer parte do repertório
da chamada ‘direita capitalista’, que predomina e reproduz a ordem social
vigente.
Esse sistema é tão dinâmico e bem arquitetado que, ao tempo em
que exclui, inclui. Ou seja, quando não consegue dar conta da exclusão, tem a
possibilidade de incluir, e mesmo assim manter seu poder de mando ‘soberano’, e
até a esquerda opositora desse sistema, acaba, quando conquista (ou ganha)
algum poder institucional nele, utilizando-se das suas estruturas e modos, das
suas facilidades e regras para poder se manter. Então amigos, a problemática é
mais profunda do que se desenha no jogo ideológico por conquistas de espaço (ou
território), e não basta a tomada de poder ou sua reformulação, é necessário pensar
e ir além disso (para quem sabe um dia, estar), mexer com os valores, modos,
concepções e formas de se pensar e fazer, e isso está para além da economia, da
infraestrutura social. É preciso que se perceba e se desconstrua, em certa
medida, a cultura humana, ou seja, a superestrutura precisa sentir também o
abalo, pois transformar a economia apenas, se comprovou, não basta –
presenciamos uma problemática sociocultural.
O subcomandante Marcos é ‘sub’ pois transfere ao coletivo o
comando social, e seu rosto, sua identificação não é o elemento que vai
torna-lo um zapatista. Com seu ‘rosto limpo’, portanto, identificado, ele passaria
a ter uma marca, um território localizado, policiado, e assim, se tornaria presa
fácil. Quando os zapatistas afastam a identificação de si, cobrindo o rosto,
não sendo mais indivíduos fragmentados, passam a fazer parte de um todo maior
(uma ‘causa’), e a partir disso, ter uma só voz, onde o ‘eu sou’ continua
existindo, mas onde o ‘todos somos’, adquire outra proporção, e isso se justifica
quando o zapatista por ‘não ter rosto’, indagado por um jornalista que lhe
pergunta: “Mas quem é você?”, responde: “Somos todos Zapata!”.
Subtraio disso tudo, amigos, possibilidades e não certezas ou
convicções – que fique claro! Prefiro, neste caso, assim pensar, consciente de
que, a ‘confusão’ das máscaras, dos mascarados e dos mascaramentos, tem dois ou
mais caminhos: um, o de gerar novos olhares, mais amplos ou irrestritos, não direcionados
a uma localização ou território dado, mas, descaracterizado de ‘ser um em si
mesmo - um eu’, em pró do conteúdo (onde todos tenham uma voz que compreenda a
voz de cada um), o que poderá se ampliar em possíveis e reais mudanças; outro,
o de confundir e apenas tornar tudo um grande espetáculo (e de certo modo,
assim já não o é?). Os demais caminhos, como diz o poeta, ‘se fazem
caminhando’.
obra de Banksy
2 comentários:
perfeita análise!
perfeita análise!!!!!!!!!!!11
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