Venha o tempo em mim. Me traga rasuras, estragos, vivências. O
tempo soberano que cura é o tempo tirano que mata. Ele, só ele tem poder junto à
vida. Venha o tempo em mim. Me traga o riso idiota do palhaço sem sonho. A
amargura nobre do burguês sem riso. O semblante risonho da criança selvagem. Um
naco de perversidade do velho bêbado imoral que perambula pelas ruas sem pátria
nem patrão. Venha o tempo em mim. Meus cabelos brancos, minha meia potência,
minhas rugas e pele murcha como a fruta deixada ao sol. O odor do que aos
poucos apodrece e não perdura. O tanto de tempo que me deu vidas e que deixei
para trás em copos e garrafas de venenos baratos nos bares da vida. Venha o
tempo em mim. Me traga aquele eu que já fui e ficou para trás, nos tempos de
infância, quando corria sujo e livre pelas ruas vazias em cenários bucólicos.
Já fui do mato. Já fui da roça. Já fui gente que andou descalço no tempo das lidas.
Já habitei cidades invisíveis e campos infinitos longe deste abandono
civilizatório das multidões vazias. Venha! Faça do que resta dos meus sonhos um
pouco de realidade. Nem que seja uma realidade breve e com pouca ou quase
nenhuma variação. Está em tempo. Pois o tempo, eu sei, um dia não mais se fará.
E eu, em tempo, me despedaço para um dia, quem sabe, me recriar. Em mim, tempo
ainda há.
* também publicado no jornal Folha do Bairro, 12/12.
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