sexta-feira, 12 de dezembro de 2014

Em tempo...

Venha o tempo em mim. Me traga rasuras, estragos, vivências. O tempo soberano que cura é o tempo tirano que mata. Ele, só ele tem poder junto à vida. Venha o tempo em mim. Me traga o riso idiota do palhaço sem sonho. A amargura nobre do burguês sem riso. O semblante risonho da criança selvagem. Um naco de perversidade do velho bêbado imoral que perambula pelas ruas sem pátria nem patrão. Venha o tempo em mim. Meus cabelos brancos, minha meia potência, minhas rugas e pele murcha como a fruta deixada ao sol. O odor do que aos poucos apodrece e não perdura. O tanto de tempo que me deu vidas e que deixei para trás em copos e garrafas de venenos baratos nos bares da vida. Venha o tempo em mim. Me traga aquele eu que já fui e ficou para trás, nos tempos de infância, quando corria sujo e livre pelas ruas vazias em cenários bucólicos. Já fui do mato. Já fui da roça. Já fui gente que andou descalço no tempo das lidas. Já habitei cidades invisíveis e campos infinitos longe deste abandono civilizatório das multidões vazias. Venha! Faça do que resta dos meus sonhos um pouco de realidade. Nem que seja uma realidade breve e com pouca ou quase nenhuma variação. Está em tempo. Pois o tempo, eu sei, um dia não mais se fará. E eu, em tempo, me despedaço para um dia, quem sabe, me recriar. Em mim, tempo ainda há. 


* também publicado no jornal Folha do Bairro, 12/12.



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