quinta-feira, 31 de outubro de 2013

Leituras do Cotidiano - 31/10


Uma fábula do mundo real

Andava distraído, pisando em formigas sem querer. Pisava em formigas que cruzavam encarreiradas meu caminho, com pedaços de folhas cortadas cuidadosamente sobre suas cabeças. Decerto iam para seus ninhos estocar alimento para o inverno que estava por chegar. E eu, com toda a imprudência humana, as pisoteava, sem me dar conta de quantas mortes eu praticava naquele instante. Formigas morriam enquanto eu andava, perdido na minha distração cotidiana. Queria chegar cedo ao trabalho para impressionar o chefe. Pela primeira vez ele diria: “Chegou cedo!” “O que houve? Caiu da cama?” De minha parte eu nem responderia, se assim fosse. Puxaria logo o meu berro e dispararia três tiros à queima roupa. Plantaria duas azeitonas no peito e uma bem na testa do infeliz, que cairia para trás, como numa cena de um filme hollywoodiano feita em câmera lenta. Seria um espetáculo pra mim e pros demais que odeiam o tipinho. Pelo menos assim eu seria lembrado. Alcançaria certa fama nos noticiários da televisão. Seria capa de todos os jornais sensacionalistas deste país. Meu pai ficaria, pela primeira vez, orgulhoso do filho – “Pelo menos teve atitude uma vez na vida!”, enquanto outros pais, negativamente balançariam suas cabeças. Daria entrevistas e ganharia o respeito de alguns colegas de cela no presídio. A classe empresarial iria ficar indiferente, mas os credores iriam me odiar. Os devedores brindariam em minha homenagem (eis que nasce um novo herói!). A mulher do chefe me agradeceria por livrá-la do marido detestável que chegava em casa todo dia tarde e cheirando perfume e suor alheios. Sua amante choraria lágrimas de crocodilo por perder as flores semanais, a lingerie semestral, aveludada e vermelha, os jantares a luz de velas, regados de boa espumante e olhares invejosos. Quereria minha morte, certamente! Eu não ganharia o próximo salário, em compensação não precisaria mais olhar toda manhã para aquele sorriso esnobe estampado naquela cara arrogante. Muitos seguiriam meu exemplo, outros continuariam amedrontados no seus cantos, esperando o dia de folga e o salário mínimo no final do mês, sonhando em um dia ter um carro como o do chefe. Mas isso tudo não aconteceu. Mesmo eu chegando cedo, o chefe sorriu sinicamente e sussurrou: “Tá achando que é melhor por isso?”



Para Lou Reed...

O mestre se foi depois de um ‘dia perfeito’. 
Escreveu poesia, viveu seu tempo, compôs uma nova canção inspirado na vida andeja, urbana e dos que vivem sem arrependimentos. 
O mestre criador e seu ‘veludo subterrâneo’ estão vivos na história dos que ouvem e pensam, sentem e transitam para além do que é simplesmente estável.







* também publicado no jornal Gazeta de Chapecó, 31/10




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