terça-feira, 4 de fevereiro de 2014

Economia, cultura e os acessos: uma problemática contemporânea!













(imagem do filme '1,99: Um supermercado que vende palavras' de Marcelo Masagão)


Vivemos um momento onde os acessos nunca estiveram tão garantidos, historicamente falando. Graças muito ao tratamento dado à economia pelos governos (de orientação de esquerda, vamos assim dizer) Lula/Dilma. Tanto que, o Brasil saiu de uma economia ‘instável’ e historicamente ‘subdesenvolvida’, para uma economia mais ‘estável’, figurando hoje entre as oito economias mais fortes do globo -  conste que no modo de produção capitalista, economicamente falando, nada é tão ‘estável’. Mas vamos deixar esse ‘detalhe’ de lado para avançarmos no tema. De fato, o acesso hoje é mais garantido que outrora. A nova ‘classe-média ascendente’ (fenômeno contemporâneo) está aí para comprovar tal tese. E não fui eu quem inventou isso. Atualmente, o poder de consumo do brasileiro anda bom. Ele frequenta shoppings, faz festas e come churrasco no final de semana. Ele financia, compra e paga seu carro zero. Ele repara ou constrói sua casa. Ele alimenta-se melhor e tem acesso a bens de consumo como nunca antes na história do país. E isso tudo faz parte desse ‘avanço econômico’ gerado por políticas de ‘inclusão’ e facilitações nos acessos. E isso é bom. Quer dizer, até certo ponto. No caso, pode ser bom. Mas, também, pode não ser. Confuso? Claro, como muito do que penso e escrevo. Mas vamos lá, tentar ao menos, entender isso (eu me incluo nessa tentativa – conste!).

De fato os acessos aos bens de consumo e necessidades básicas materiais e algumas até imateriais melhoraram nos últimos anos, e isso me parece inegável. Tirando uma quantia de opositores que tentam fazer a crítica como se tudo isso fosse meramente um ‘assistencialismo’ por parte do governo, grande parcela da população percebe, sente e vê essas melhorias acontecerem ao seu redor e consigo (agora, se isso é processado como sendo parte de um projeto governamental, já não tenho tanta certeza). A partir dessa ‘base’, dessa relativa estabilidade econômica por que passa o país, alguns ‘outros avanços’ se fazem necessários e urgentes. São os avanços na área ‘intelectual-cultural’. Não que todo mundo tenha que se tornar ou vá ser um douto letrado, não é isso. Avanços na área ‘intelectual-cultural’ condizem com acessos aos materiais culturais e artísticos disponíveis no país. Ou seja, também fazendo parte do consumo dado por esse avanço econômico. Hoje, muito se fala em ‘consumo de cultura’. Pessoalmente, não gosto muito desse modo de emprego do termo ‘consumo’ casado a ‘cultura’, mas, falarei desse jeito, acompanhando o discurso corrente. Depois de saneada a fome, adquirida a estrutura básica e alguns ‘luxos’ ofertados por essa sociedade do consumo e dos acessos, vem os ‘grandes vilões’ da história (sob tudo, da história contemporânea): os ‘valores’ e ‘hábitos’, os quais compõem, de grosso modo, a cultura.

A sociedade como conhecemos, basicamente é constituída de espaços e corpos que ocupam esses espaços. Esses corpos por sua vez carregam em si algo a que chamamos ‘mentalidades’. Essas mentalidades são constituídas a partir de certos conhecimentos dados pela razão, percepção, visão, leituras, sensibilidades, relações, interpretações, experiências. Resumindo: uma relação entre pensamento e prática. Quando falamos em corpo e sociedade, podemos nos referir a um ‘corpo social’, que compreende as pessoas com seus corpos e pensamentos, os corpos com seus espaços, os espaços com suas práticas, convívios e/ou relações. Tudo isso se relaciona diretamente com a cultura. Portanto, independente da forma, somos seres culturais. Divididos estão o modo de organização coletiva (sociedade) e a cultura, em, basicamente, duas estruturas. Uma delas chamaremos de ‘infraestrutura’, que compreende os aspectos físicos e materiais do corpo social, a outra de ‘superestrutura’ (ou ‘supra’), que compreende os aspectos mentais e intelectuais do corpo social – ambas compõem a sociedade e sua cultura (ou suas ‘manifestações culturais’). A partir dessa compreensão, vamos ao ponto central da nossa análise ou discussão.

A questão econômica está no âmbito da infraestrutura, no sentido existencialista da palavra, ou seja, a economia é algo material, enquanto a cultura, no seu sentido imaterial ou intelectual-mental, está no âmbito da superestrutura. Então, como já vimos, o Brasil avançou bastante na sua infraestrutura. Querendo ser otimista, penso que o país também avançou uma quantia (só que menor) na sua superestrutura. A questão central quando tratamos da superestrutura, são os valores e hábitos que eles inspiram – falando de uma maneira geral, a cultura. Pensando nisso, uma questão se apresenta: Se houve um aumento quanto aos acessos do brasileiro (a quase tudo), de qual acesso estamos falando? Precisamos identificar isso para que tudo não se torne qualquer coisa. Os acessos também se deram a nível cultural? Penso que sim. Mas de qual cultura falamos? Ligada a que hábitos e valores? O aumento do consumo dado pela condição econômica atual gera que tipo de consumo? Quais são os bens de consumo mais acessados nesses anos em questão?

Assim chegamos numa questão de postura ou posição, definidas a partir da linha de raciocínio anterior. É sabido que existe em cada pessoa uma gama de valores, os quais resultam em práticas ou hábitos, por exemplo, se mais brasileiros compraram sua televisão de tela plana, led, ou o que for, esses tiveram mais acesso as programações dos canais transmissores – além das condições econômicas para tal. Mas quais conteúdos predominam nesses canais, nessas programações? O que, por exemplo, uma telenovela projeta? Qual valor, qual hábito ela alimenta? Da mesma forma, se consumiu mais livros ou artes afins? Será que ter simplesmente o acesso faz com que a pessoa afine sua mentalidade, seu intelecto, seu gosto, seus valores e hábitos, sua cultura? Agora saímos da televisão e vamos para a escola (nem tanto, pois a TV também ‘educa’ – e como?). E as escolas, e as universidades, as igrejas, clubes sociais, a família, o que essas instituições consomem? O que essas instituições promovem? E o discurso político institucional-oficial, qual mentalidade ele estimula? A partir do que? O atual presidente uruguaio Pepe Mujica, com muita postura declarou que "...uma das desgraças da política é ter abandonado o campo da filosofia e ter se transformado em um receituário econômico…”. Complementado a isso, a socióloga Rita M. Coitinho diz: "Os receituários econômicos, ao apartar a vida social da economia, estão voltados exclusivamente para o equilíbrio da economia capitalista". - eu diria mais: 'a separação da vida social e cultural - da economia'.

Pensando a partir desse complexo, só me resta insistir numa mudança, com um avanço, só que, não meramente econômico, material, infraestrutural. Um ‘avanço’ cultural ou superestrutural. E como isso se daria? Não tenho certeza, porém, penso que com certas ‘reformas’ socioculturais e nas mídias (sob tudo as oficiais), já daríamos um bom passo. É preciso ir de encontro às necessidades e anseios da população, para além da questão econômica e política. As pessoas precisam também de arte e sensibilidade para dançar a vida para além da promessa de um futuro que nem sequer existe, de um sucesso individual e material que amesquinha e mata o fundamento da vida, para sorrirem, terem prazer e certo ‘refinamento’ na hora das ‘escolhas’, na hora do consumo. Já que consumimos como nunca, precisamos prezar por um consumo sustentável, que vá de encontro com as diversidades, que respeite a natureza, as crianças, os velhos, os diferentes. ‘Uma cultura, não de inclusão, mas de não exclusão’, pois enquanto pensamos na necessidade de incluir, temos um sintoma de ‘doença social e cultural’. Longe de idealismos, mas com um tanto de utopia, precisamos modificar essas relações. A sociedade, a cultura, os valores e hábitos, devem dar a garantia da ‘não exclusão’, pois se precisamos incluir, é porque nossa cultura algum dia já excluiu e continua fazendo. Além do mais, como provoca o pensador e poeta do caos Hakim Bey: ‘Incluir no que? Nisso?’ (referindo-se a sociedade do espetáculo e do consumismo).

“A alienação do espectador em favor do objeto contemplado (o que resulta de sua própria atividade inconsciente) se expressa assim: quanto mais ele contempla, menos vive; quanto mais aceita reconhecer-se nas imagens dominantes da necessidade, menos compreende sua própria existência e seu próprio desejo” (Guy Debord - 'A sociedade do espetáculo')

Alguns pensadores e/ou teóricos da sociedade moderna e contemporânea, como Debord, Lipovetsky e o próprio Orwell (literato), falam em suas obras numa certa ‘sociedade do espetáculo’, num certo ‘império de efêmero’ e num certo ‘big brother’. Não só eles, mas o próprio Marx problematiza essas questões, assim como Bourdieu quando trata do habitus e da reprodução nos aparelhos ideológicos e de reprodução, assim como Nietzsche no seu ‘Crepúsculo dos Ídolos’, entre outros. São vários os pensadores e pesquisadores que falam de coisas diferentes frente ao mundo moderno, mas que se relacionam entre si, tendo o ‘modo de vida’, a ‘cultura’ e o meio ‘sociocultural’ como problemática. Relacionando todos eles (ou alguns deles), chegamos a um pensamento mais aberto e possível dessa perspectiva sociocultural, tema da nossa análise ou discussão.

Em suma, crescemos ou avançamos na economia. Precisamos agora (e acredito ainda não ser tarde), também avançar no fator cultural, em que concernem as mentalidades, o intelecto, o bom uso das linguagens, os hábitos e o modo de vida. E para avançar nisso, faz-se urgente uma resistência, uma desconstrução frente a certo modo de vida, a certa ‘lógica espetacular’ de mercado, consumo e status. Começando pela educação, pois é na nova geração que isso pode acontecer. Os produtos, ao contrário do que muitos pensam, trazem em si cargas de ideologia, status e afins. O espetáculo cotidiano promovido pelos meios de comunicação de massa e pela política ordinária oficial em seus discursos e arranjos somam na manutenção dessa cultura, desse modo de vida que, mais ou menos, todos conhecem, sentem, ou pelo menos vivem. A questão é assumir e encarar isso, ter postura frente ao mundo, a ordem social e a si mesmo. O que é bem difícil, eu sei, mas não impossível.

Para possibilitarmos-nos uma cultura mais ampla, recheada de diversidades e linguagens, as quais se comuniquem e que aprimorem a existência e a vida humanas, não precisaríamos pensar diferente? Para agir ou reagir diferente? Frente a essa problemática, a pergunta que grita: ‘Pra isso, o acesso, por si só, basta?’ Fica o problema. Penso que seja um bom começo.



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