terça-feira, 20 de setembro de 2011

Farrapo...

* capa de disco raro do grande grupo de música nativista 'Os Teatinos'

"Eis o homem"

(Marco Aurélio Campos)

Brotei no ventre da pampa
Que é pátria na minha terra
Sou resumo de uma guerra
Que ainda não tem importância
Diante de tal circunstância
Segui os clarins farroupilhas
E devorando cochilhas
Me transformei em distância

(...)

Estou em farrapos. Mais um balaço e morro. O último atravessou meu ombro e foi dar no meu cavado que tombou feito uma araucária num desmatamento. É, assim é a guerra! Se é que dá pra chamar aquilo de guerra. Assim é a batalha e a lei do mais forte. Assim foi minha vida. Meu cavalo tive que sacrificar. Meu único amigo, companheiro de andanças. Um balaço no peito e o bicho ali agonizando. Eu, impotente feito uma novilha que vai pra carneação. Não consigo bater no peito e dizer, como tantos fazem, com orgulho: ‘Sou gaúcho!’. Eles nunca estiveram numa batalha. Aí fica fácil discursar, bater no peito, gritar grosso. O exército farroupilha, depois de feito o acordo com os imperiais, me deixou aqui, feito um trapo. E quem é o farrapo nessa história? Eu, um negro, sem chão pra pisar, sem terra pra plantar - e agora sem cavalo pra montar. Eu, um índio. Eu, um caboclo - sem um mate pra cevar. Me deixaram sem espaço. Era só uma promessa. Fui lanceiro pro estancieiro. Fui cortador de erva, secador de charque, domador, fui escravo e fui obreiro. Me criei na lida e o que aprendi do mundo, foi o mundo que ensinou. No lombo do meu cavalo atravessei horizontes. O capataz obediente sempre em volta, o patrão, sua terra, imensa, infinita. Latifúndio, me disseram um dia. Um pedaço me prometeram se eu fosse pra guerra. Uma guerra pela causa, diziam. República! Libertação! Palavras que nunca me fizeram sentido. E deu no que deu. Eu aqui, sem rumo. Até meu cusco serviu de sebo pro laço do patrão. E eu não tive escolha. Me tornei caudilho. Fui mercenário. Saqueei, matei, fiz miséria dessa gente. Sempre na promessa de tempos melhores que ainda não chegaram – e tenho medo, nunca chegarão! Sou do pampa. Sou filho da terra. Meu rancho hoje é isso. Essa tapera velha que tu ta vendo! Chão batido, pés descalço. Nem minha bota de garrão sobrou. As três marias perdi na última batalha onde também deixei metade do meu braço. O fígado ficou na venda do Herculano. O coração com Anita, a filha do patrão. Nada mais me resta. O general pegou seus homens e foi-se embora. A promessa de voltar ficou no esquecimento. Assim como eu. Lutei e tive meu nome apagado da história. Agora, ouço uma notícia. Querem outra vez separar esse latifúndio do resto do país. Não, eu não lutarei por isso. Nunca! Quero minhas últimas forças para dizer ‘Não!’. Já fui tapeado uma vez, me basta! Por acaso você sabe algo de mim? Se sou gaúcho ou deixo de ser? Isso importa alguma coisa agora? O tempo passou e minha herança é essa. Mas eu tenho um sonho, sim. E ele tem nome: Reforma Agrária!


Nenhum comentário: