segunda-feira, 13 de maio de 2013

Em busca da redenção do passado de Chapecó

“A repercussão da entrevista de Monica Hass na elite política local”

* Artigo do amigo, historiador-pesquisador e professor, Claiton Marcio, publicado em 09/05 no jornal  "A Gazeta de Chapecó" – reproduzido na íntegra...


O debate em torno da entrevista da professora Monica Hass sobre o “Caso Marcelino” tem repercutido em diversos espaços e inquietado diversos atores. À esta entrevista, dois vereadores da atual legislatura (Marcio Sander e Dirceu Cecchin) responderam, explicitando seu ponto de vista sobre as afirmações da socióloga. As opiniões, contrárias ou favoráveis, também estão circulando nas redes sociais desde que “A Gazeta de Chapecó” deu visibilidade à questão. O debate provocado pela professora gerou reações contrárias por parte dos dois vereadores acima citados, que discordam principalmente da questão da existência de um “mandonismo” local, que serve de elo explicativo entre o caso do linchamento (1950) e a morte de Chiarello (2011). Em sua entrevista, Hass afirmou que “na verdade a gente tem uma situação que é a mesma: nós temos uma história de um mandonismo local muito forte na região Oeste como um todo e principalmente em Chapecó. No estudo que foi feito sobre o linchamento isso ficou muito evidenciado: quais são as práticas políticas que as pessoas exercem dentro da sua busca e manutenção pelo poder, que é o clientelismo, a corrupção, a violência, o nepotismo, os meios de comunicação. Essas são práticas políticas que acompanham a história política brasileira.”). Vereador em sua primeira legislatura, Cecchin expõe sua discordância da seguinte forma: “O que não podemos concordar é com a íntima relação que fazes com o 'linchamento' ocorrido no passado e a morte do vereador, dando a entender que o sistema de 'coronelismo' ainda impera na Cidade de Chapecó, totalmente contrário às emanações legais.” Este argumento, muito próximo dos modelo idealista dos princípios liberais, argumenta que as instituições sociais promovem na atualidade uma verdadeira “redenção” em relação ao passado. Em outras palavras, se existiu mandonismo/coronelismo/linchamento antigamente, na atualidade temos uma realidade diferenciada e complexa, que nos “desprende” enquanto sociedade chapecoense e oestina de nosso passado, ao menos no argumento do vereador. Mas uma coisa é certa: não há discordância sobre os elementos do passado, uma vez que Chapecó foi colonizada pela Bertaso & Maia, onde um de seus sócios era exatamente um Coronel, de nome Ernesto Bertaso. Mas se o processo de industrialização brasileira teria, aos poucos, dissolvido o poder dos antigos coronéis, existem leituras que observam “mutações” neste instrumento de dominação, ou seja, que o tradicional poder local analisado em livros clássicos como “Coronelismo, Enxada e Voto” (de Victor Nunes Leal, publicado em 1948) teria assumido outras feições, tal qual o também clássico exemplo de Antônio Carlos Magalhães durante a década de 1990. Assim, não fala-se em coronelismo ou mandonismo imaginando uma figura do passado, notadamente da Primeira República (1889-1930), mas metamorfoseada e “atualizada” no contexto em que vive. Não é possível analisar os recursos de poder utilizado por figuras políticas como José Sarney ou Siqueira Campos (governador do estado do Tocantins), por exemplo, sem se remeter aos conceitos de mandonismo ou coronelismo. Mas é necessário “atualizar” este conceito e buscar entender o mandonismo destes em uma sociedade complexa. E se um “coronel” hoje não atua como à maneira de Bertaso ou de outro coronel de seu tempo, é exatamente porque são separados por uma rede complexa de elementos que é expressa na sociedade brasileira atual: um contexto que os diferencia, uma ruptura com o passado. Mas é este mesmo termo, o contexto, que aponta semelhança no fato das duas figuras, o coronel do passado e o coronel metamorfoseado do presente, exercem poder sobre a sociedade tendo como ponto de partida os interesses de grupos privados sobre o bem público, utilizando-se da coerção para alcançar seus objetivos. Isto representa uma continuidade, uma semelhança entre os dois contextos. Este é o argumento de Monica Hass quando afirmou em sua entrevista que “hoje você tem um contexto muito mais complexo, tanto que naquela época não se tinha esses movimentos sindicais fortes que se tem agora, mas de qualquer forma o sistema é o mesmo, não muda, ele se adapta aos novos contextos, às pessoas que estão no poder, envolvidas nos seus interesses políticos, econômicos, pessoais.” Desta forma, quando a professora aponta semelhanças entre os contextos econômico e político (e não os fatos) do linchamento e do caso Chiarello, ela se remete a dois momentos históricos diferenciados (portanto, uma ruptura), mas com uma linha de interpretação comum, ou seja, a possibilidade de violência de origem política nos dois casos. Mas se existe uma distância temporal entre 1950 e 2011, como é questionado pelo vereador Marcio Sander que “não aceita a classificação de Chapecó como cidade de mandonismo pela violência que viria desde a década de 50 com a chacina até os tempos atuais com o episódio a que se refere”, (de acordo com o artigo), a professora poderia se apoiar em outros fatos que envolvem a cena local e que expressam o mandonismo em outras épocas. E neste sentido, posso auxiliar, uma vez que estudei por anos a consolidação do regime militar em Chapecó e a configuração política após 1964 no município (que envolvia tantos outros hoje emancipados).

Se não são conhecidos ou não repercutiram socialmente possíveis crimes de ordem física durante o período (1964-1985) no município, como no caso de 1950 e 2011 (e em nível estadual, como na cassação e posterior “desaparecimento” do Deputado Estadual Paulo Stuart Wright em 1973), a rearticulação político-partidária promoveu expurgos diversos na vida pública. E isto é exemplo de mandonismo local articulado com o poder central, ou seja, o executivo nacional, uma vez que não é possível dizer que pessoas como o ex-prefeito Sady De Marco (1967-1969) e o ex-Deputado Estadual Genir Destri simplesmente “suicidaram-se” politicamente. Ambos foram cassados, como aponto em meu relatório de pesquisa, em função de denúncias de “subversão” promovidas por lideranças políticas locais tradicionais vinculadas à ARENA (Aliança Renovadora Nacional), partido de apoio ao regime militar. Em resumo, a cassação (e por consequência, a anulação política e social de duas lideranças ascendentes na vida partidária regional e estadual) aconteceu em função de denúncias promovidas junto aos militares por um vereador e um deputado estadual, herdeiros da ordem política coronelista. E quem assumiu a prefeitura após a cassação de Sady de Marco? O genro do Coronel Ernesto Bertaso. Exemplos não faltam nas décadas de 1980 e 1990 sobre a ascensão do poder político de outras famílias e suas práticas de mandonismo, e que podemos aprofundar em um outro momento. O argumento é que nesta linha de pensamento existem elos não apenas entre 1950 e 2011, mas entre 1950 e 1964 (rearticulação do poder local/mandonismo sob a bandeira da ARENA), 1950 e 1969 (cassação de Sady e Destri), 1950 e a “peste suína africana” de fins da década de 1970 (poder da agroindústria), 1950 e a tentativa frustrada de cassação do ex-prefeito José Fritsch (1997), ou seja, que a utilização de instrumentos de coerção sempre existiram e continuam existindo. Não apenas em Chapecó, evidentemente, mas o que chama a atenção de todos é a possibilidade de assassinato de um vereador de oposição, o que remete sim a uma construção histórica passada. Remete a um passado que as elites locais tentaram e tentam sistematicamente esquecer. E por isso a pesquisa da Monica e sua entrevista em “A Gazeta” continuam incomodando.

Entendo, neste sentido, que o episódio do “linchamento” é um ato fundante na história chapecoense, ou seja, depois desse acontecimento o passado ficou pesado demais para que as elites políticas pudessem carregar em seus ombros. A própria Monica Hass demonstra em seu livro que, por anos, não se vendeu lote algum na cidade após a chacina. Foi preciso por gerações esconder o passado, ocultar sua violência, e aos poucos criar a ideia de um presente de “progresso”, onde a “perseverança das famílias que aqui chegaram” (como afirma Sander) promovem o desenvolvimento da região. 


Como forma de interpretar essa história, me agradam as palavras do pensador alemão Walter Benjamin (1892-1940) sobre o quadro Angelus Novus, de Paul Klee (1920): “Existe um quadro de Klee intitulado Angelus novus”, escreveu Benjamin em sua IX tese sobre o conceito de história. “Nele está representado um anjo, que parece na iminência de afastar-se de algo em que crava seu olhar. Seus olhos estão arregalados, sua boca está aberta e suas asas estão estendidas. O anjo da história deve parecer assim. Ele tem o seu rosto voltado para o passado.” O “anjo da história chapecoense”, remetendo à ideia de Benjamin, olha com estupor para um passado de violência. Ele não faz distinção entre 1950 e a atualidade, uma vez que ele enxerga diferentes formas de violência nas diferentes ocasiões. Um emaranhado de violência simbólica, física, psicológica, política... mas que não deixam de ser expressões de violência. E quando Benjamin continua seu texto afirmando que “do paraíso sopra uma tempestade que se emaranha em suas asas e é tão forte que o anjo não pode mais fechá-las”, então, “esta tempestade o impele irresistivelmente para o futuro, ao qual volta as costas, enquanto o amontoado de escombros diante dele cresce até o céu. O que nós chamamos de progresso é essa tempestade.” O anjo da história olha para o passado e é violentamente empurrado para o presente, que evita olhar, porque no presente ainda persiste a semente da violência. Ele olha para 1950 e o “progresso” o empurra violentamente para o nosso tempo. Em resumo, as diversas formas de violência expressas no mandonismo local são constitutivos desta e de outras sociedades e, por este motivo, perduram ao longo do tempo, expressos de forma variada: se a elite política prefere mostrar aos demais que Chapecó é uma “cidade de progresso”, onde “os que aqui chegaram venceram”, ocultam os destroços que ficaram pelo caminho. Exemplo disso é o vídeo “Eu sou Chapecó”, difundido em 2011 durante a realização da EFAPI, e por isso relacionada ao poder público, que busca engrandecer o “povo trabalhador” e que justamente não menciona esse passado que todos querem esquecer (sequer um índio é mostrado no vídeo sobre a história da cidade, mas somente este tema pode resultar em um artigo).

Não posso generalizar, mas é possível pensar que na academia e em outros espaços de estudos a maioria dos pesquisadores concordará com o argumento da professora Monica Hass, uma vez que atitudes vistas como “individuais”, como é o caso de um suicídio, são na verdade resultado de coerção externa e, portanto, social. Durkheim publicou seu clássico estudo sobre o tema há mais de cem anos (1897). A sociedade “suicida” o indivíduo, pois uma ação individual é resultado do meio social que o cerca (não é preciso mencionar que: 1) existem muitos estudos atualizados sobre o tema; 2) que não há unanimidade na tese de suicídio no caso de Chiarello, uma vez que o primeiro laudo apontou homicídio). E neste sentido, a autora expõe que aquilo que o Fórum em defesa da vida, os movimentos sociais e outras entidades reivindicam, por outro lado, não se resume apenas a uma rigorosa investigação da morte de um vereador e liderança política, mas também a continuação da investigação e as conclusões sobre as denúncias feitas por Chiarello. Tão grande quanto o trauma da perda de um companheiro, o temor social destes movimentos é que a divulgação de um laudo de “suicídio” apague ou coloque em segundo plano as denúncias feitas, deslegitimando quem as fez. Se isto acontecer, é reflexo sim de continuidade do mandonismo local, que silencia as vozes divergentes e oculta suas ações. E é possível pensar que neste momento, o ex-vereador olha de onde estiver para o passado chapecoense, enxergando-o como violência e tentativa de esquecimento.

 Dr. Claiton Marcio, historiador e professor de história na Universidade Federal da Fronteira Sul (UFFS), campus Chapecó-SC.





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