sexta-feira, 27 de junho de 2014

Cães...



Meu olho aberto no meio da chuva e o chapéu protege a visão. Entre detritos e artefatos de guerra urbana eu vejo o mundo com os olhos que sou. Habito, assim como você,  cidades destruídas, e a ilusão de um sol para todos enche minha utopia de esperanças. O caminho revigora-se ao momento em que dou mais um passo adiante. Piso na possa d’água em que me vejo rapidamente refletido e minha imagem se desfaz como se desfizesse em um espelho quebrado. Assim percebo que não sou inteiro, sou partícula e fragmento, às vezes montado, às vezes disperso, e minha imagem é costurada dia após dia, nessa feitura em que me estilhaço e me refaço ao tempo de ritmar meus passos. A poça d’água volta a ser inteira, desta vez sem minha imagem. Taciturno, dou outro passo enquanto a chuva insiste em cair, leve, porém estrondosa e sem intervalo, inundando ruas, pensamentos e a minha solidão. Os cães me cheiram o rastro acompanhando meus passos, esses amigos olfatórios, vagabundos e cheios de histórias abandonadas no tempo. Como eu, são os cães, vadios e cheios de instinto, olfatos apurados em busca da vida que, tardia, não tarda em passar. Debaixo de uma marquise esquecida paro para descasar, olho em volta, o mundo está vazio. Os cães me cercam como lobos. Seus olhos me dizem: ‘Seja o chefe da matilha!’. Abandono minhas memórias, e junto aos cães saio à caça.


* também publicado no jornal Folha do Bairro, 27/06...



Um comentário:

Guiomar Baccin disse...

Fantástico! Muito bom mesmo. Parabéns!