Meu
olho aberto no meio da chuva e o chapéu protege a visão. Entre detritos e
artefatos de guerra urbana eu vejo o mundo com os olhos que sou. Habito, assim como
você, cidades destruídas, e a ilusão de
um sol para todos enche minha utopia de esperanças. O caminho revigora-se ao
momento em que dou mais um passo adiante. Piso na possa d’água em que me vejo
rapidamente refletido e minha imagem se desfaz como se desfizesse em um espelho
quebrado. Assim percebo que não sou inteiro, sou partícula e fragmento, às
vezes montado, às vezes disperso, e minha imagem é costurada dia após dia,
nessa feitura em que me estilhaço e me refaço ao tempo de ritmar meus passos. A
poça d’água volta a ser inteira, desta vez sem minha imagem. Taciturno, dou
outro passo enquanto a chuva insiste em cair, leve, porém estrondosa e sem
intervalo, inundando ruas, pensamentos e a minha solidão. Os cães me cheiram o
rastro acompanhando meus passos, esses amigos olfatórios, vagabundos e cheios
de histórias abandonadas no tempo. Como eu, são os cães, vadios e cheios de
instinto, olfatos apurados em busca da vida que, tardia, não tarda em passar.
Debaixo de uma marquise esquecida paro para descasar, olho em volta, o mundo
está vazio. Os cães me cercam como lobos. Seus olhos me dizem: ‘Seja o chefe da
matilha!’. Abandono minhas memórias, e junto aos cães saio à caça.
* também publicado no jornal Folha do Bairro, 27/06...
Um comentário:
Fantástico! Muito bom mesmo. Parabéns!
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