sábado, 20 de agosto de 2011

Uma história da miséria (um conto de ficção?)

Era uma noite fria. Eu e Parafuso andávamos lado a lado em busca de um local  quente para passar a noite. Qualquer lugar é mais quente do que a rua no inverno. Mas fazia anos que não dava um frio tão intenso. Ah, Parafuso! Meu fiel amigo de estrada. Diversas vezes, enquanto eu bebia, ele me fazia companhia, com seu olhar todo voltado pra mim. Olhar sincero, de compaixão. Olhar canino. Depois, quando eu já não mais me entendia, Parafuso deitava ao meu lado com seu corpo peludo e me aquecia. Sempre que podia, eu fazia uma fogueira pra nos protegermos do frio. Não foi diferente naquela noite. Enquanto eu olhava para o fogo, lembrava do dia em que Parafuso apareceu na minha vida. Ah! Aquele olhar! O bichinho era tão pequeno que eu tinha o maior cuidado ao pegá-lo na mão. Havia encontrado um terreno baldio para armar minha pousada, quando ouvi um choro canino que vinha detrás de um capinzal. Me aproximei e foi então que encontrei aquele cãozinho dentro de uma caixa de papelão misturado a alguns parafusos velhos - e esse então foi o motivo do seu nome. Levei-o para perto da fogueira e dividi com ele o pouco arroz com carne moída que tinha. Ele abanou o rabo me retribuindo com um olhar de agradecimento. Olhar que ficou gravado pra sempre na minha memória. Ali nascia nossa amizade. Algo comum nos unia: nossas vidas miseráveis, de abandono e andanças. Alguns anos se passaram e Parafuso cresceu. Eu envelheci junto ao meu amigo peludo. Esse inverno foi o mais frio e miserável que já passamos juntos. O ácido da cachaça corroendo meu intestino, enquanto Parafuso, raquítico, enfraquecido de tanto caminhar e pouco comer, já nem latia mais. Naquela noite, maldita noite, alguns jovens bem vestidos passaram por nós enquanto tentávamos aquecer um ao outro. Derramaram cerveja gelada em mim. Parafuso tentou me defender quando foi chutado violentamente por um dos garotos. O frio estava me matando, não bastasse a fome. A cachaça amenizava minha dor e aumentava meu delírio. Num ímpeto de loucura, despejei o resto de cachaça que havia na garrafa sobre Parafuso que, muito machucado, ainda abanava seu rabo pra mim. Acendi um fósforo e acabei por atear fogo no meu único e miserável amigo. Parafuso não gritou nem gemeu. Apenas me olhou com um olhar de despedida. Em chamas, deu algumas voltas e tombou. O fogo durou até o amanhecer e eu sobrevivi mais uma noite. O efeito do álcool passou e então eu fui perceber o que havia feito. A fome voltou e eu ainda estava vivo. Contive as lágrimas... Meu coração, agora mais frio do que o próprio inverno, ainda insiste em bater.


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